terça-feira, 7 de abril de 2020

Parte XVIII


História do saneamento do Porto

O homem começou a viver em condições gregárias há cerca de 10.000 anos. Formava, então, pequenos aglomerados e ia espalhando os seus dejetos por onde calhava. Essa deposição não representava qualquer dano ambiental porque correspondia a pequenas quantidades que se degradavam biologicamente e eram incorporadas pela natureza. Assim se enriquecia o solo em nutrientes que favoreciam o desenvolvimento das plantas, alimento de um bom número de animais e, parte destes, de outros animais. Tudo era, nesse tempo, renovável, até que o homem começou a produzir objetos por volta de 8.500 anos A.C. e começou a formar cidades, concentrando a produção de lixo e de fezes.
O desenvolvimento da civilização humana, que sempre dependeu da água, esteve ligado a importantes bacias hidrográficas, das quais sobressaíram as bacias dos rios Amarelo, Indo, Tigre e Eufrates e Nilo. Dados históricos demonstram que os cuidados higiénicos, nos quais se integra o saneamento básico, foram desenvolvidos na Ásia e norte de África, há mais de 6.000 anos, pelas civilizações suméria, babilónica e egípcia. Sabia-se, então, que as águas residuais e o lixo disseminavam doenças. Em 3.750 A.C. foram construídas, na cidade suméria de Nipur, galerias para escoamento de esgotos. Nas ruas da cidade de Babilónia, “capital” do pequeno estado com o mesmo nome que pertencia à Mesopotâmia, território atualmente incluído no Iraque, existiam canais que serviam para escoamento das águas pluviais e outras, enviando-as para locais afastados das áreas habitada. As suas casas tinham numa divisória um buraco que comunicava com uma fossa que garantia a “fermentação” (digestão anaeróbia) dos dejetos e a infiltração no subsolo da água. Estas fossas eram constituídas por um cilindro de barro com as paredes perfuradas e o espaço entre a parede exterior preenchido com cacos para facilitar a filtração no subsolo. Os povos da Mesopotâmia já sabiam então que a água contaminada causava doenças.
A civilização harapeana, que se desenvolveu nos vales dos rios Indo e Savarasti[1] por volta de 3.500 A.C., terá sido das primeiras a construir as suas cidades segundo projetos em que as condições sanitárias eram defendidas, dedicando grande preocupação no acesso à água e saneamento. Além de serem servidas de água por meio de poços, as casas possuíam vasos sanitários que se ligavam a um canal coberto comum que percorria a cidade. A cidade de Harappa terá sido a cidade a desenvolver o primeiro sistema de distribuição de água encanada com tubos cerâmicos. Para desenvolver a higiene da sua população, as cidades harapeanas dispunha de banhos, alguns dos quais ainda em bom estado, como os da cidade de Mohenjo-Daro. (Monte dos Mortos) onde se terão construído os primeiros edifícios com latrinas que eram descarregadas e lavadas com água e encaminhadas para a rede de saneamento. Do mesmo período (3.200 A.C.) são os vestígios de canalizações para drenagem de esgotos domésticos encontrados nas ilhas Orkney da Escócia.
  
Figura 1 – Sistema de drenagem de uma rua de Mohenjo-Daro. Fotografia de Mortimer Wheeler, 1959, descarregada de https://bit.ly/2xLWZOq em 5/4/20

Nas ruínas de algumas cidades pré-históricas de Creta (3.000 – 100 A.C. e das antigas cidades Assíria foram encontrados vestígios de evoluídas redes de saneamento e de deposição de esgotos domésticos. O palácio de Knossos em Creta possuía uma latrina cujo topo estava equipado com um reservatório de água pluvial que era descarregado para proceder à sua limpeza. A sanita era de loiça e tinha assento de madeira. Os etruscos deram início à construção da Cloaca Máxima (coletor principal) que foi concluída pelos romanos, em 510 A.C., para drenar os esgotos do vale do Fórum e que se manteve ao serviço durante cerca de 2.400 anos.
Em Roma foram construídas importantes infraestruturas de distribuição de água e saneamento a partir do século IX A.C. As primeiras obras destinavam-se à drenagem de pântanos. O sistema de drenagem de águas residuais e pluviais teve início no séc. V A.C. Os esgotos ou cloacas conduziam subterraneamente essas águas até ao rio. Apesar disso, a população continuou a lançar os seus excrementos para a rua até que, em 100 D.C., foram publicadas leis que obrigavam a ligar a drenagem dos domicílios ao sistema público de esgotos.

Figura 2 - Latrinas públicas romanas do século I D.C.

Algumas cidades europeias, como Paris, preservaram parte das infraestruturas romanas após a queda da civilização romana. Todavia, os avanços conseguidos pelos romanos foram rapidamente esquecidos por uma boa parte dos europeus e as condições sanitárias das cidades degradaram-se fortemente na Idade Média. Este recuo sanitário deu oportunidade ao aparecimento, nos séculos XII e XIII, de epidemias de cólera a peste negra ou bubónica que acabaram por dizimar cerca de 25% da população europeia. Como consequência da peste bubónica, surgiram as pestes pulmonar e septicémica. Esta última levou à morte de 60 a 90% das vítimas. Admitia-se, nas zonas de influência cristã, que a sujidade era uma marca de piedade, isto é, a ausência de higiene santificava. No final da Idade Média, foram construídos abrigos privados subterrâneos para recebimento de dejetos e, mais tarde, abriram-se as resistentes fossas. Quando estes "reservatórios" ficavam cheios, o seu conteúdo era removido e usados esses resíduos como fertilizantes em hortas ou quintas próximas ou despejados em cursos de água ou em terrenos baldios. Infelizmente, esta técnica ainda persiste.
Tendo sido subestimada a necessidade de desenvolver o saneamento e continuando o mau hábito de lançar para as ruas todo o tipo de resíduos, a vida nas cidades tornou-se insuportável a partir do século XVII. Ao mesmo tempo, a hidráulica progredia e fortalecia o abastecimento de água que, paradoxalmente, aumentava o volume do esgoto que se espalhava pelas ruas e se infiltrava no subsolo. A contaminação dos mananciais era inevitável e as epidemias explodiam com maior frequência. A peste negra foi o mais negro resultado das más condições sanitárias do período renascentista europeu. Estima-se que só no século XIV esta epidemia generalizada tenha dizimado, aproximadamente, quarenta milhões de pessoas em toda a Europa. Só a varíola vitimou, no século XVIII, cerca de 60 milhões de europeus. Esta tragédia uma parte positiva: descobriu-se a vacina contra a varíola[2] e levou os países mais desenvolvidos a aplicar medidas preventivas no campo do saneamento básico e na vigilância sanitária. Apesar disso, a concentração da população em áreas industriais teve efeitos que, em boa medida, anularam uma boa parte do progresso conseguido. A evolução da tuberculose nos países atingidos pela Revolução Industrial é disso um exemplo claríssimo. Esta doença apenas começou a ser controlada nas últimas décadas do século XX.
O aumento da densidade populacional alterou a forma de convivência humana, reunindo homens e mulheres para formarem aldeias, vilas, cidades e, com o desenvolvimento industrial, grandes metrópoles com milhões de pessoas. A concentração de habitantes foi paralela à concentração de resíduos, tornando mais problemática a sua conversão em produtos menos nefastos. A vida tornou-se, então, mais difícil para os mais pobres, sobretudo para aqueles que tinham migrado do campo para a cidade, passando a viver em condições sanitárias miseráveis. Muitos dos que vivem no Porto conheceram ou, melhor, conhecem as péssimas condições de vida nas “ilhas”. Como a relação entre a contaminação e a doença não era muito clara até meados do século XIX, a preocupação que existia na gestão de resíduos das cidades prendia-se mais com o mau aspeto que davam às ruas e ao insuportável fedor que se espalhava pelos bairros e no interior das habitações.
Para além das frequentes epidemias, Londres viveu um conjunto de desastres com explosões e incêndios provocados pelo biogás que se produzia nas condutas e canais que arrastavam os dejetos para o rio Tamisa, e suportou, durante longos períodos, como o dos anos 1858 e 1859, o mau cheiro do gás sulfídrico libertado pela digestão anaeróbia de toda a espécie de detritos que persistia nos canais, muitos deles originalmente de água natural e não de esgoto, e outras condutas e no próprio rio. Estas impróprias condições de vida cedo obrigaram os ingleses a desenvolver meios que permitissem ver-se livre dos esgotos segundo princípios razoáveis, não esquecendo a necessidade de proteger o ambiente e a saúde pública. Começaram, ainda no século XVIII, por ligar as retretes aos canais, introduzir, em 1840, a limpeza de canais e condutas, e construíram, na época vitoriana, os novos tubos de escoamento. No final do século XIX, aperfeiçoaram invenções relacionadas com o W.C. (water closed), instalando também os “bidés” e os urinóis.

Figura 3 - Cartoon Satírico de John Leech, 3 de julho de 1858: “o Padre Thames (o rio) apresentando sua prole à bela cidade de Londres”. As três crianças representam a difteria, escrófula e cólera. Descarregado em 5/4/20 de https://bit.ly/2UJHcZn.

O sifão ou oclusão hidráulica (W.C.), uma das mais importantes inovações na área do saneamento, foi descoberto por Alexander Cummings, em 1775, no Reino Unido, pais que foi o grande impulsionador do saneamento nos aglomerados populacionais. Este pequeno órgão devia ser instalado nas descargas de todo o equipamento que usasse água e a descarregasse depois da utilização para esgoto. Na sua forma mais simples equivale a um “U” onde se constitui um selo de água que impede o retorno de gases fétidos. Em Londres foram instaladas canalizações para drenagem das águas pluviais, para os quais era autorizado, até 1815, os despejos provenientes da cozinha. Entretanto, os esgotos eram depositados em cloacas e fossas que, quando esgotavam a sua capacidade, eram esvaziadas com a ajuda de vasilhas e transportadas para os campos ou cursos de água. Este sistema era, obviamente, insustentável porque contaminava o subsolo das áreas urbanas, os campos e as águas, e espalhavam as doenças transmitidas por via fecal. Outro desenvolvimento interessante foi o “Earth Closet” consistia num sistema constituído por uma cadeira ou banco cujo assento dispunha de uma abertura redonda por baixo do qual se colocava um balde que continha terra seca e que recolhia a urina e fezes que nele caíam. Quando cheio, o seu conteúdo era lançado nas terras para servir como adubo.

Figura 4 - O “Earth Closet”. Fonte: shorturl.at/hwIS8, consultado em 19/3/20

Tendo ocorrido, em 1847, um surto de cólera provocado contaminação da água de uma nascente londrina por resíduos de uma fossa, o Parlamento britânico aprovou, em 1848, legislação sanitária para a Inglaterra e Pais de Gales. Este acontecimento foi muito importante para conhecer o processo de transmissão de doenças que culminou, em 1864, com a descoberta, por Louis Pasteur, da relação entre algumas doenças e os microrganismos patogénicos. Em 1855, foi promulgado no Reino Unido o Metropolis Management Act que introduziu os órgãos autárquicos (Metropolitan Board of Works) na coordenação da construção de estruturas das cidades nas quis se integravam as redes de abastecimento público e de saneamento. O “Public Health Act 1875” definia as responsabilidades sobre a prestação de serviços de saneamento e poluição da água e obrigava as autoridades locais a construir esgotos e sistemas de drenagem. Sofrendo emendas ao longo dos anos, a lei foi consolidada na parte IV do “Public Health Act 1936” que passou a garantir o encaminhamento do esgoto de uma habitação para a rede de saneamento da autoridade local. Em 1901 foi apresentado, em Inglaterra, o primeiro relatório da Royal Comission on Sewage Disposal, criada em 1898, que visava quais os métodos mais adequados de tratamento e disposição de esgotos.
Na sequência de uma série de epidemias de cólera, a cidade de Paris começou, em 1840, a construir a sua rede de esgotos que se transformaram no orgulho da cidade. A construção do maior coletor teve início em 1850, e, em 1870 a rede já tinha 500 km de comprimento. A totalidade da rede de saneamento, do tipo combinado, foi concluída em 1930. Os maiores coletores, com uma altura mínima de 1,8 metros para que um homem pudesse andar no seu interior para o limpar, andava-se de barco e proporcionavam visitas aos domingos para os parisienses.

Figura 5 – Museu dos Esgotos de Paris. Fonte: Shadowgate/Flickr

Acompanhando o desenvolvimento e as novas descobertas da microbiologia a ciência e prática sanitária tiveram a sua expansão na segunda metade do século XIX. Os contributos de Pasteur e Koch e muitos outros microbiologistas permitiram identificar as principais causas das doenças infeciosas como os bacilos do tétano, da peste bubónica e pneumónica, do tifo, da difteria, da tuberculose e da cólera. Abriram-se assim as portas para que a medicina tivesse desenvolvido as vacinas e os antibióticos e os sanitaristas começassem a aplicar, no princípio do séc. XX, a desinfeção no tratamento de águas. O avanço da microbiologia foi o fator decisivo no desenvolvimento dos sistemas de tratamento de água para consumo humano, no entendimento do processo de transmissão de doenças e no desenvolvimento das técnicas de tratamento de águas residuais. Depois de entendidos os processos naturais de recuperação da água e do solo contaminados, foram introduzidos os processos biológicos de tratamento de águas residuais no início na década de 1890 com a aplicação dos leitos percoladores ou filtros biológicos que evoluíram para a descoberta, em 1914, do processo de lamas ativadas, o método ainda o mais importante nesta área. Estes métodos ainda hoje são usados, embora ao longo dos séculos XX e os vinte primeiros anos do XXI se tenham introduzido inúmeros aperfeiçoamentos que tornaram as estações de tratamento de águas residuais mais eficientes, com melhores resultados, e gerando condições para a recuperação da água tratada e das lamas resultantes do processo de tratamento.
Algumas casas agrícolas do Norte e Centro de Portugal dispunham de um sistema para eliminação de resíduos eficiente e amigo do ambiente. Essas habitações tinham dois pisos, funcionando parte do rés-do-chão como corte dos animais. O chão deste espaço era coberto com uma camada de tojo que servia de “cama” para os animais e funcionava como meio para a digestão aeróbia por microrganismos da urina e das fezes dos animais e daqueles que habitavam no piso superior. Este tipo de tratamento de resíduos, denominado por compostagem, para além de degradar os compostos orgânicos sem produzir maus cheiros, libertava calor que aquecia o piso superior, verdadeiro piso radiante. Ao fim de algumas semanas o lavrador dispunha de um excelente adubo orgânico com que nutria as suas terras agrícolas. Pena que este sistema não possa ser usado em pleno nas cidades porque elas têm vindo a impermeabilizar os solos e a afastar explorações agrícolas, mesmo as de pequena dimensão. Felizmente, ainda se vendem pequenas unidades de compostagem para produzir estrume para vasos e jardins a partir dos resíduos orgânicos caseiros.
Aureliano Pinto[3] reconheceu a semelhança entre o corpo humano e as cidades no que diz respeito ao sofrimento que teriam se ambos guardassem “os produtos da sua desassimilação” e “conservassem os depósitos excrementícios que tem de produzir-se”. A sua observação levou-o a concluir que as cidades têm que ser mantidas limpas e que os resíduos produzidos deviam ser aproveitados como adubos agrícolas. A natureza dos resíduos que se produziam em 1880 era bastante diferente dos de hoje, mas o caminho devia ser o mesmo – a reciclagem. Infelizmente, naquela data, no Porto e no resto do país faltavam a limpeza e a higiene pública que forneciam “às estatísticas da disenteria, da febre tifoide números grandemente desproporcionados com a população”. À semelhança de muitos outros autores, Aureliano Pinto defendia, para manter a salubridade das cidades no que respeita aos seus esgotos, o “estabelecimento duma canalização subterrânea que receba e leve à distância pelo efeito do seu peso e pelo auxílio da água[4]. A questão de, após a sua recolha e afastamento da cidade, a parte líquida das dejeções ser lançada num rio ou no mar era liminarmente rejeitada pelo autor que defendia, como destino final, o seu uso na irrigação agrícola, prática então seguida em algumas cidades europeias, citando como prova Paris, Londres, Milão. Infelizmente, Aureliano Pinto não apresenta a “sua solução” para a cidade do Porto como seria de esperar num trabalho académico que visava contribuir para a melhoria das condições sanitárias do Porto.
Na Idade Média, as cidades rasgavam valas nas suas ruas, com paredes protegidas por pedras, por onde drenavam as águas pluviais e os resíduos sólidos ou líquidos lançados pelos seus habitantes. Esta foi a primeira solução adotada no Porto, tendo sido descobertos vestígios dessa rede de drenagem em prospeções arqueológicas realizadas na Viela do Anjo. Quando chovia, esses resíduos eram arrastados pelas chuvas que os encaminhavam para os ribeiros, como o da Vila, terminando no rio Douro.
É muito antigo o mau hábito de os portuenses manterem sujas as ruas, praças, baldios, fontes e chafarizes. Armindo de Sousa[5] considerou que na povoação limitada pela cancela velha conviviam homens e bichos, vivos e mortos, numa algazarra de barulhos e odores. Os muçulmanos que ocuparam o aglomerado no século VIII surpreenderam-se com o mau hábito dos nativos de não se lavarem nem mudarem de roupas. A gravidade dos hábitos é traduzida na ata da Sessão de 4 de outubro de 1391[6] da Vereação onde se escreve que alguns cidadãos faziam dalas[7] e privadas nos caminhos, ruas e vielas públicas que eram um grande dano e vergonha para a cidade. A Vereação acordou ordenar ao procurador do concelho que fizesse desaparecer as ditas dalas e privadas e que multasse aqueles que não cumprissem as ordens no prazo de dois a três dias. A luta contra a contaminação continuou, como o comprova a Ata da Sessão de 9 de julho de 13928 da Vereação onde se proibia a lavagem de panos e tripas nos chafarizes e nas fontes ou no redor delas.
Fizemos atrás referência às primeiras medidas tomadas, primeiro em 1336 e depois em 1392[8], para que melhorassem a limpeza e higiene da cidade como, por exemplo a proibição de deitar para a rua “águas lixosas ou outro lixo”. Como acontecia em outros lugares, mesmo no estrangeiro, não sendo as águas “lixosas”, podia-se lançar água para a rua desde que se dissesse, três vezes, “ÁGUA VAI”. Nem sempre se atirava água limpa – tudo se lançava pela janela fora para a via pública. As Ordenações Afonsinas ordenavam que não se deitasse lixo ou não se fizessem esterqueiras nas cidades ou vilas porque podiam entupir canos e impedir a servidão das águas. Para o vigiar, os almotacés tinham a obrigação de verificar que cada um limpasse a área defronte da sua porta e que as freguesias removessem mensalmente uma esterqueira e lançar o esterco nos lugares onde se pudesse depositar. Eles deviam também impedir que fossem lançadas na via pública bestas, cães e outras coisas sujas e fedegosas, devendo impor penas se os autores não as tirassem.
Na ata de 10 de novembro de 1431 da Vereação da Câmara[9] escreveu-se: “… acordaram que em razão da ordenação do Infante que manda que todos limpem as esterqueiras e ruas sob certa pena que lhes será posta, acordaram que esta pena será de cinco reis a cada um que o não fizer como lhe for mandado”. O povo, contudo, não aderia muito às decisões políticas e poucos as cumpriam. Por outro lado, os políticos também não eram muito firmes nas suas decisões, cedendo a pressões com bastante facilidade. Na ata de 29 de dezembro de 1439[10] registava-se a medida tomada sobre uma privada que estava sobre o muro da Ribeira em que os vereadores reconheceram que apesar ”de estar acordado que se desfizessem, que fiquem quietas e que não as desfaçam porquanto disseram que eram importantes e proveitosos no dito lugar…”. Valiam as festas que se realizavam com as ruas e vielas limpas e alindadas pelo povo às ordens dos almotacés.
As ordenações manuelinas clarificaram e ampliaram as regras instituídas pelas anteriores Ordenações, e definiram o valor de algumas coimas. Introduziram, também, multas a aplicar aos almotacés se estes não fizessem cumprir as obrigações do povo no que respeita à conservação da limpeza e higiene nas cidades e nas vilas. As Ordenações Filipinas os Acórdãos e as Posturas de 1587 da Câmara Municipal reiteraram todas as leis, mas a população do Porto mantinha a sua irreversibilidade produzindo esterqueiros em tudo o que fosse sítio público e não poupando as fontes e chafarizes a esse mau hábito de sujar.
A partir do século XVI passou a ser feita a extração das fossas e dejetos domésticos que eram transportados em pipas pelos lavradores dos arrabaldes que os utilizavam como estrume para adubar as terras agrícolas. Este mau hábito manteve-se no Porto até aos primeiros anos do século XX. As brilhantes páginas 37 a 40 do Relatório de Ricardo Jorge com o título “Saneamento do Porto” são merecedoras de constar numa antologia sobre a miséria em que viviam os nossos antepassados tripeiros. Escreve Ricardo Jorge que “a cova da cloaca chegou à última semana de gestação” e é forçoso “esvaziar-lhe o ventre imundo”. Na véspera da retirada da imundície, é feita uma inspeção “pelo providencial carreiro das cercanias” com um “varapau, besuntado do visco de inspeções análogas, um pau milagroso que repele os transeuntes à distância”. “...O lavrador mergulha o marmeleiro; é o seu estercómetro. Calcula a cubagem, sopesa a massa. À vara aderiu uma camada grossa verde – negra; aprecia-lhe a cambiante, funga fortemente, amassa-a entre os dedos, e, se é conhecedor fino e meticuloso, não recua perante os extremos da análise organolética; sem engulhos, toca com a ponta da língua o pau de prova e ratifica pelo paladar as qualidades adubantes da fazenda”. Acordado o negócio o esvaziamento da fossa será feito pela calada da noite. “...A postos os esterqueiros agora vazam a caneco ou a balde a água choca no funil de uma pipa[11] que, depois de repleta, se tapa com um rolho de palha. Os sólidos pastosos, embrulhados, vão nas sebes de madeira. Canecos e cestos giram da fossa para o carro à cabeça dos moços do esterco, imundos com a geleia fedorenta que lhes escorre em fios grossos pela camisa, pelas mãos e até pela cara”. Ricardo Jorge termina a descrição dizendo que” os humores da fossam deixam o seu selo porco pelo chão, pelas escadas e pelo portal”, apesar das posturas municipais que o proibiam.
Entre os séculos XIV e XVI a peste bubónica assolou por muitas vezes o Porto. Em 1348 ocorreu a “grande pestenença” que causou um dos maiores morticínios no mundo e à qual a cidade do Porto não escapou. Em 1415, o Porto e Lisboa sofreram novo abalo trazido pelas tripulações de navios estrangeiros que desembarcaram nos portos das duas cidades. Em 1481, apesar do cordão sanitário que isolou a cidade, a peste assolou a cidade do Porto obrigando a população a abandoná-la. Sucederam-se surtos epidémicos em 1486, 1488, em 1521, que conduziram à quase desertificação da cidade do Porto, e o de 1569 que causou grande morticínio no Porto. Em 1581-1582 o contágio ceifou um número avultado de vidas na cidade, obrigando D. Filipe II de Castela a enviar um socorro de 1.500 cruzados para acudir aos empestados e introduzir medidas sanitárias[12]. No período filipino a saúde pública da cidade era da responsabilidade do senado da Câmara que composto por um corpo de funcionários que incluía os guarda-mor da saúde que respondiam pela vigilância das portas e postigos, embarcações, e determinavam quarentenas ou cordões sanitários. Os órgãos municipais possuíam quadros técnicos de saúde, geralmente compostos por um médico, um cirurgião, um boticário e um sangrador. Em períodos epidémicos o médico acompanhava o guarda-mor da saúde “no exame que estes faziam aos tripulantes e passageiros dos navios procedentes de zonas suspeitas de peste”. Ao cirurgião cabiam os “exames clínicos, diagnósticos e tratamento adequado aos padecentes”. O Boticário dedicava-se a aviar receitas do médico. Finalmente, o Sangrador-Barbeiro, colaborador não permanente, tinha por funções sangrar doentes, lançar ventosas e fazer cabelos e barbas.[13]



Figura 6 - Carnaval do Clube Fenianos Portuenses de 1905 – Carro do saneamento. Postal n. º 6, editado por Photographia Guedes, descarregado em 4/3/20 de https://bit.ly/2whcZro.

Para combater a peste é criado, em 1680, um serviço de saúde pública com a presença de um “cabeça de saúde” em cada freguesia, tendo sido publicado um “regimento” com as regras a seguir em situações de surtos, epidemias ou pandemias. Durante o cerco do Porto, entre 1832 e 1833, os mercenários estrangeiros fiéis a D. Pedro IV introduziram na cidade uma epidemia de cholera morbus, que levou à morte cerca de um décimo da população da cidade. Entre 1854 a 1856, novo surto de cólera atingiu o país e a cidade do Porto. Em 1856, na sequência de uma epidemia de febre amarela, o Conselho de Saúde Pública ordenou o afundamento de quatro navios que se encontravam fundeados no rio Douro e a saída da barra de outros oito. Dois anos depois ocorreram surtos de tifo, varíola e disenteria. Sabe-se que no ano de 1885 morreram no Porto cinquenta e cinco pessoas com febre tifoide e quarenta e uma com difteria[14]. O tifo e a tuberculose, que atacavam com maior intensidade os meios operários, foram responsáveis por mais de 7% dos óbitos portuenses em 1899.
Na segunda metade do século XIX foi reconhecida a relação entre a qualidade da água consumida e a origem de surtos e epidemias. Nas duas últimas décadas desse século “a epidemiologia estabeleceu e a bacteriologia veio confirmar, que se encontram na água inquinada, agentes de algumas grandes infeções humanas, sobretudo de febre tifoide, cólera e disenteria[15]. Lobo das Neves, que reconhecia a inquinação das águas do subsolo do Porto, descreveu um surto de febre tifoide que ocorreu, em agosto de 1903, nos arredores dos Guindais que teve como origem na água da fonte de Malmeajudas que estava contaminada com o bacilo de Eberth. Em 1899, eclodiu um surto de peste bubónica matou 100 das 300 pessoas infetadas, não conduzindo a maior mortandade devido às medidas alvitradas pelo então médico municipal Ricardo Jorge que impôs um cordão sanitário à volta da cidade. Porém estas medidas revelaram-se impopulares uma vez que, ao impossibilitarem a passagem de pessoas e mercadorias, prejudicando as atividades económicas. A escassez relativa de vítimas facilitou a ideia feita de que não se tratava de um surto epidémico e que apenas se estava a intentar prejudicar o comércio e a indústria da cidade pelo que o iminente médico higienista, acabou por abandonar a cidade que tanto lhe devia, após o apedrejamento da sua própria casa.
Até ao princípio do século XX não existia aquilo que podia ser designado como rede de saneamento de esgotos no Porto que garantissem a retirada, por exemplo, em 1888, dos quatro milhões de quilogramas de excrementos e mais de cem mil pipas (cerca de 55 milhões de litros) de urina dos 122.000 habitantes do Porto[16]. As encostas da cidade encaminhavam os despejos líquidos para as linhas de água, principalmente para o rio da Vila, que, por sua vez, as levavam até ao rio Douro. Os resíduos sólidos acumulavam-se nas ruas e vielas e eram arrastados pelas chuvas para o mesmo destino. Em 1519, os moradores das ruas da Banharia e dos Mercadores protestaram contra aqueles que despejavam os bacios ou penicos no rio da Vila, muito próximo do chafariz da Ponte de São Domingos. A Câmara proibiu tal costume, embora não indicasse qualquer alternativa para aquele despejo a não ser o de partir aqueles objetos se eles fossem encontrados nesse lugar. De vez em quando, a fiscalização da Câmara aparecia e multava os infratores mais distraídos, porque os mais ladinos não eram surpreendidos com as rusgas da Câmara. Àqueles maus hábitos dos tripeiros, acrescentava-se o costume de manter em liberdade, pelas ruas, os porcos e cabras. Em 1635, impuseram-se multas a tal prática, que apenas foi atenuada quando D. João V mandou que se executassem posturas camarárias que o proibia e que, em processo sumário, o oficial de justiça considerasse os porcos e cabras que encontrasse nas ruas como seus, não sendo necessário citação ou processo de juízo.
Em 1715 a Câmara assumiu a responsabilidade de manter as ruas limpas, primeiro de acordo com as necessidades, mais tarde de forma sistemática para o qual contratou cerca de trinta homens. Alguns testemunhos, como o do Padre Rebelo da Costa e de alguns estrangeiros que visitavam a cidade, consideravam o Porto como a cidade portuguesa mais limpa, título que hoje está longe de conquistar.
O primeiro de muitos aquedutos de despejo foi construído em 1763[17]. Em 1832, havia um aqueduto na Praça de D. Pedro que recolhia as águas imundas vindas da Rua do Almada e das Hortas conduzindo-as para o rio da Vila. A Câmara Municipal obrigava os moradores de habitações próximas daqueles aquedutos a instalarem canalizações que conduzissem aqueles materiais àquelas impróprias infraestruturas. O Código de Posturas Municipais de 1839 proibia as canalizações que despejassem para as ruas e, se não existissem aquedutos públicos, deviam aprofundar as bacias das latrinas. Durante uma boa parte do século XIX a ação da municipalidade em dotar a cidade com uma rede de abastecimento de água e outra de saneamento foi muito reduzida, praticamente nula, salientando-se, apenas, a instalação de fontes públicas, algumas a custas diretas dos moradores da área beneficiada, e a abertura de algumas linhas de escoamento de água pluviais que as conduziam, mais a sujidade arrastada, para os rios e ribeiros próximos. O encanamento do rio da Vila deu origem, em 1763, ao primeiro aqueduto para despejo de dejetos que ficava na zona onde hoje está a rua de São João[18]. Com a cobertura da Câmara Municipal, os aquedutos foram-se multiplicando e os moradores obrigados a instalar canalizações que a eles se ligavam. Em 1839 foram proibidas as canalizações que descarregassem os dejetos na rua e, nas ruas onde não houvesse condutas públicas, os proprietários deviam aprofundar as bacias das latrinas17. Os aquedutos e a canalização que a eles chegava era de construção defeituosa e permeável. Alguns dos tubos eram cortados para que a “água” que por eles corria fosse usada na rega de quintais. Escondia-se, assim, a insalubridade, mas não a contaminação.
Com a fundação, em 1825, da Real Escola de Cirurgia do Porto foi introduzida no segundo ano do curso cirúrgico uma cadeira dedicada ao estudo da ciência da higiene que poderia dar um impulso à limpeza da cidade. Esta escola passou a chamar-se, em 1836, de Escola Médico-Cirúrgica do Porto em cujo curso passou a ter duas cadeiras nas quais se ensinavam os aspetos ligados à higiene.   Mais tarde, por decreto de 30 de dezembro de 1852, foi criada a Escola Industrial do Porto que integrava no seu plano de curso uma disciplina dedicada à higiene privada e pública, com uma componente dedicada à indústria. Esta escola passou a Instituto Industrial em 1864 e, 22 anos mais tarde, ampliou-se a sua atividade surgindo, então, o Instituto Industrial e Comercial do Porto, que passou a integrar, no seu curso ligado à indústria, a ciência e técnica da higiene  nas construções que integrava, para além dos aspetos diretamente ligados à construção de edifícios, a ventilação e aquecimento, as redes de abastecimento de águas, esgotos e redes de saneamento, sem esquecer as latrinas e fossas profusamente espalhadas pela cidade do Porto e o aproveitamento das águas de esgoto.
Na última década do século XIX, o Porto foi atingido por vários surtos epidémicos, alguns deles recordados pelas suas inúmeras vítimas mortais. A cólera, a febre bubónica e outras doenças epidémicas exigiram as primeiras medidas preventivas que começavam em premiar aqueles que apresentassem ratos mortos na Câmara e terminavam com o despejo de hipoclorito nos bueiros dos esgotos acompanhados com a lavagem com água. Em 1892, foi criado o Serviço Municipal de Saúde e Higiene que incluía o Laboratório Municipal do Porto que tinha o objetivo principal de controlar a qualidade sanitária da água e dos alimentos e o Serviço de Estatística Demográfica[19]. No início o controlo analítico correspondia à caracterização físico-química e, poucos anos depois, começaram-se a fazer análises microbiológicas da água dos poços, da Companhia e das fontes e chafarizes que, no caso de muitas destas, passaram a usar o triângulo negro, símbolo da sua não potabilidade. Em todo o caso, os sanitaristas, e não só, opinavam que melhores condições sanitárias deviam ter como alicerces duas redes: uma de abastecimento de água com boa qualidade e a outra de saneamento que evacuasse os dejetos produzidos.
Um dos grandes lutadores pela instalação de infraestruturas que contribuíssem para aumentar o grau de salubridade da cidade foi o polémico Ricardo Jorge que dedicou uma boa parte da sua vida ao estudo da situação sanitária da cidade e dos efeitos. Esteve envolvido na criação do Serviço Municipal de Saúde e Higiene, contribuiu, em 1893, para a publicação do Boletim Mensal de Estatística Sanitária, e fez parte da Comissão Técnica de Saneamento da Cidade do Porto nomeada pela Câmara Municipal tendo sido o seu relator. O relatório[20] apresentado à Comissão Municipal de Saneamento, em 1898, é um documento rico e notável, tanto na forma como no conteúdo, merecedor de uma nova edição acessível a todos aqueles que amam o Porto. O capítulo II – As Imundícies – é um cruel retrato da cidade no final do século XIX. No capítulo III são apresentadas as propostas[21] que permitiram definir a estratégia municipal para fazer do Porto uma cidade limpa, saudável e confortável. Infelizmente, cento e trinta e dois anos depois, ainda não foi alcançado plenamente aquele objetivo.
Como médico municipal, Ricardo Jorge, que foi incluído por Jorge Alves[22] no APOSTOLADO SANITÁRIO, identificou a origem e a evolução da peste bubónica de 1899[23], que registou 320 casos e 132 mortes. Esta peste, que se transformou numa pandemia, teve origem na província de Yunnam, na China, por volta de 1840, chegou ao Porto. No laboratório de bacteriologia do Porto identificou o bacilo de Kitasato-Yersin, responsável pela peste bubónica, tendo depois transmitido ao governo o resultado da sua investigação. O Governo impôs medidas sanitárias restritivas que afetaram os interesses da indústria e, sobretudo, do comércio que despertaram a revolta popular dirigida, essencialmente, à pessoa de Ricardo Jorge que se viu obrigado, com amargura, a cessar a sua atividade no Porto, em maio de 1899, e se deslocou para Lisboa onde foi recebido de braços abertos pela Escola Médica da capital. O seu prestígio garantiu-lhe a fundação e direção do Instituto Central de Higiene e dirigiu a Instrução Geral de Saúde Pública, mais tarde, Direção Geral de Saúde e Beneficência Pública, criada por Decreto de 4 de outubro de 1899. Esta instituição foi substituída, em 1911, pela Direção Geral de Saúde que percorreu vários ministérios até que foi integrada, em 1958, no novo no Ministério da Saúde e Assistência. O Instituto Central de Higiene tinha por fim a habilitação técnica e profissional do exercício sanitário, e passou, em 1929, a ser denominado de Instituto Superior de Higiene Dr. Ricardo Jorge e, em 1971, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, integrado no Ministério da Saúde e Assistência. Ainda em 1899, foi desenvolvida a Junta Central de Melhoramentos Sanitários que tinha a função de examinar todas as grandes obras de saneamento e de abastecimento público de água potável.


Figura 7 - Ricardo Jorge, aluno quintanista da Escola Médico-Cirúrgica do Porto (1879). Museu de História da Medicina “Maximiano Lemos” da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, reproduzido por Ferraz, 2008: 94.

Alfredo Lobo das Neves[24] abre a sua dissertação apresentada à Escola Médico-cirúrgica do Porto em 1903 com uma frase que justifica o objetivo do seu trabalho: “A Invicta cidade é, afinal, uma cidade vencida... pela porcaria”. Lamentava o autor que os terrenos conspurcados por todo o tipo de detritos acumulados na via pública e disseminados pelos falsos esgotos e pelas fossas fixas e móveis contaminavam as toalhas de água subterrâneas em vez de as purificar. Resultava daí que uma boa parte dos mananciais servia a cidade com água que “não era própria para bebida e preparação dos alimentos, como também para os usos industriais e para a alimentação das caldeiras a vapor”. Relembrava, o autor, uma conferência do Prof. Ferreira da Silva sobre as águas do abastecimento do Porto em que ele afirmou: “as águas das fontes da cidade são, em grande parte, muito impuras, denunciando, pelas suas reações, a realidade de infiltrações nocivas. As águas dos reservatórios subterrâneos que alimentam os poços da cidade estão extremamente inquinadas, assim como o subsolo onde elas brotam. Estas águas constituem um meio propício para uma propagação de moléstias infeciosas”. Um exemplo disso foi o de uma epidemia de tifo que se declarou, em agosto de 1903, nos Guindais devido à presença na água da fonte de Malmeajudas, do bacilo de Eberth (Salmonella typhy). Situação diferente, mas com a mesma origem, terá ocorrido durante a construção da Rua Sá da Bandeira iniciada em 1836, com o desabrochar da epidemia de febre tifoide devida, segundo alguns, às emanações do subsolo.
Ricardo Jorge no seu Relatório de 1888 descreve de modo expressivo o estado higiénico da cidade do Porto, mostrando que muito havia a fazer em termos de mudança de hábitos: “Muita porcaria doméstica, mesmo nos domicílios mais abastados; a limpeza não é o luxo do pobre, e o luxo do rico é capa de muita imundice. A maioria da gente anda a precisar, na frase pitoresca de Camilo Castelo Branco, dum sifão nas próprias pessoas. Se não há respeito do asseio do corpo e casa, muito menos o da rua. O transeunte de bexiga repleta, desagua-a coram populo, ora aprumando-se com as paredes, ora aproveitando todos os recantos das ruas e das portas. Se há companhia, para não faltar ao ditado – que onde mija um português, mijam logo dois ou três – dispõem-se todos muito irmãmente em fileira mictória. De noite, a favor do escuro, não desapertam só os calções; descem-nos, estravando ao longo dos passeios mais porcas escorrências.”[25]
Muitos outros autores apresentaram retratos muito negros sobre a higiene das ruas do Porto. As imundícies para elas lançadas aí se acumulavam até que as chuvas as arrastassem, principalmente para o rio da Vila que as entregava ao Douro. Dizia Furtado de Antas[26] que o Barredo, pelas condições, era “um país estranho de exótica porcaria”. As casas do centro eram, e foram construídas sem requisitos de higiene, agravando-se esta situação nas casas das ilhas que se foram multiplicando à medida que a indústria foi crescendo na última metade do século XIX e primeira do século XX. Ao aumento da população e agravamento das más condições sanitárias associava-se o aumento da mortalidade, que passou de 23,1‰, em 1870, para 39,5‰, em 1881. A mortalidade média anual na cidade do Porto, na década 1877 – 87, foi de 32,9 por mil habitantes, variando entre 24,3 (1878) e 40,6 (1881) por mil habitantes[27]. Aquela média superava em 61% a média da cidade de Londres daquela época, mostrando como a insalubridade da cidade do Porto se traduzia em elevada mortalidade, uma boa parte devido a febre tifoide e difteria. Mais assustador era a mortalidade no primeiro ano de vida que, em 1885, atingiu 236 das 1000 crianças nascidas nesse ano.
Apesar de a vacinação ser gratuita a população da cidade do Porto a ela recorria em reduzido número. Nos períodos em que se desenvolviam as epidemias, como aconteceu em 1897-98 e 1902-903, o Instituto Vacínico e os postos públicos de vacinação gratuita multiplicavam os esforços para atenderem todos os que a eles recorriam. Mesmo assim, no período entre 1896 e 1902, apenas 17.019 dos 176.463 habitantes do Porto se vacinaram. Em 1896, a mortalidade infantil atingiu um pico de 257,82‰! Apesar de inaugurada a rede de saneamento três anos antes, em 1910, de 100 cidades europeias com alguma expressão, o Porto era a que apresentava maior taxa de mortalidade com 30 falecimentos por mil habitantes. Esta negra mancha não foi extraordinária porque, ao contrário do que aconteceu nas outras cidades que a reduziram, aquela taxa manteve valores igualmente elevados, no período entre 1880 e 1909.
Nas habitações com melhores condições, os dejetos eram lançados para fossas fixas ou para esgotos que, na realidade, não existiam. O efeito contaminante acabava por ser quase o mesmo. Aureliano Pinto[28] condenava a existência de fossas porque elas contaminavam o subsolo, os lençóis freáticos e, naturalmente, poços e minas. No mesmo saco caíam o sistema de tonéis móveis que recebiam os dejetos de algumas famílias, sendo removidos e substituídos quando cheios. O autor não revelou o destino final dos dejetos, mas o mais certo era uma linha de água, pelo menos nos períodos do ano em que a agricultura não necessitasse daquela matéria prima.
A eliminação dos dejetos dos pisos superiores dos edifícios do centro do Porto conferiu-lhes uma particularidade arquitetónica – a existência de uma peculiar “privada” nas varandas das traseiras dos andares que ainda podem ser reconhecidas em muitos dos edifícios do centro. Seguindo-se à evacuação das imundícies das habitações por meio de baldes e outros recipientes, foram instaladas latrinas – banco com um buraco redondo, que se cobria com uma simples tampa de madeira - por onde caíam as fezes e urina que eram conduzidas, por meio de um tubo vertical comum a todos os andares do edifício, à esterqueira ou a uma cova funda, por vezes, com paredes em pedra. Aquele adereço instalava-se num cubículo interior, na maior parte das vezes sem ventilação, tendo chegado mesmo a estar na cozinha para “ficar mais à mão das necessidades da tripa e da gamela[29]. Como a libertação de maus cheiros vindos das fossas empestava a habitação, alguém tomou a feliz iniciativa de transferir o libertador cubículo para uma varanda das traseiras.

Figura 8 – A presença das “privadas” nas traseiras de um edifício do centro do Porto, rua do Ateneu.

A peste bubónica de 1899 fez com que a Câmara Municipal avançasse com o projeto de saneamento há muito pedido por vozes avisadas que reiteradamente insistiam em lembrar que o Porto era uma das cidades mais insalubres da Europa. Em 1903, foi assinada a escritura do contrato feito entre a Câmara Municipal do Porto, representada no ato pelo seu Presidente da Câmara, Manoel de Sousa Avides, e a firma Hughes & Lencaster de Westminster, Londres, representada pelo seu Procurador Frank Jonh Meyer. Este ato foi o culminar de um processo que teve início, em 1897, com a abertura do concurso para a execução das obras de saneamento da cidade do Porto, para o qual apenas concorreu a casa Hughes & Lencaster que apresentou o projeto com as alterações resultantes do parecer da Comissão nomeada pela Câmara. Na cidade de Rangoon, na Birmânia, onde a Hughes & Lancaster instalou uma rede separada com elevação do esgoto com ejetores Shone, em 1890, a taxa de mortalidade baixou, numa década, 11,7 por mil.

Figura 9 – Informação histórica da firma Hughes & Lancaster LTD, referindo a cidade do Porto entre os seus clientes. Fonte: Grace’s Guide, descarregado de https://bit.ly/2RgvJP4 em 5/4/20

O empreiteiro inglês assumiu a responsabilidade de executar todas as obras, incluindo as imprevistas necessárias para a execução da empreitada, fornecer todos os materiais, mecanismos e acessórios necessários à concretização do saneamento. A área abrangida pelo projeto era limitada “por uma linha perimetrica que, costeando a margem direita do rio Douro, desde o esteiro de Campanhã até à embocadura do Valle do Oiro, siga a recta até ao Matadouro, d’ahi pelos extremos da rua da Rainha e Costa C em linha recta até esteiro de Campanhã.”[30]
A firma Hughes & Lencaster era também responsável pelas expropriações que fossem necessárias, repor todos os pavimentos das ruas onde fossem instaladas as condutas, entregar à Câmara os desenhos da canalização onde deviam indicar os pontos para a ligação dos ramais de ligações às habitações que podiam ser realizados por outros empreiteiros. O preço total da empreitada “chave na mão” foi de mil e oitocentos contos de reis, a ser pago em prestações bimensais e em proporção dos materiais fornecidos e das obras executadas e verificadas. Não estavam incluídas as obras extraordinárias. O prazo para execução da obra era de quatro anos, prevendo-se multas de 1% do valor da obra não concluída por cada mês de atraso.
A rede de esgotos do Porto previa o seu escoamento por gravidade onde tal fosse possível e, em parte, pelo apoio para elevação do esgoto do sistema de ejetores ou expulsores Shone, com provas dadas em outras cidades, como na de Rangoon, na Birmânia, onde funcionava desde 1890[31]. Estes expulsores correspondiam a um processo de transporte pneumático, em que o ar comprimido era produzido na central de Sobreiras em dois compressores acionados a vapor com a capacidade para introduzir na linha autónoma cerca de dez metros cúbicos de ar à pressão de, aproximadamente, duas atmosferas. O vapor necessário ao funcionamento dos compressores era produzido em duas caldeiras que queimavam carvão e com capacidade para produzir 400 quilogramas de vapor por hora à pressão de oito atmosferas. O ar comprimido era conduzido numa tubagem de ferro disposta paralelamente ao coletor do esgoto em ferro fundido, abastecendo os expulsores da rede.
A rede de esgotos projetada[32] resumia-se a um conjunto de linhas feitas em tubos de grés que recolhiam os dejetos das casas abrangidas e que desciam ao longo das ruas da cidade até encontrarem um tubo coletor geral em ferro fundido que estava assente próximo do rio Douro, seguindo o seu trajeto desde Rego Lameiro até Sobreiras. Aqui, para receber os esgotos, foram construídos os tanques de Sobreiras, local perto do mar e da foz do rio, onde eles eram armazenados durante os períodos de maré enchente, procedendo-se, à sua descarga duas horas depois de a maré começar a baixar. Eram dois grandes reservatórios retangulares com capacidade para guardar um total de 12.750 metros cúbicos de esgoto. O fundo destes tanques estava cinco metros acima do nível médio da água do mar, garantindo que ele era esgotado em menos de uma hora e meia por escoamento num tubo de 750 milímetros de diâmetro e 172 metros de comprimento, largando-os no meio do rio, no fundo, para garantir que a sua corrente os deslocava para o mar. Enquanto a maré fosse baixando durante as quatro horas e meio, a corrente de água do rio acabaria levar os resíduos para o oceano.
Como, no final do século XIX, o tratamento de águas residuais era reduzidamente aplicado, a discussão sobre a instalação dos esgotos em cidades contemplava dois tipos de sistemas: o separado, com duas redes, uma para os esgotos domésticos e, com restrições, industriais; o combinado ou unitário que reunia todos os esgotos com as águas pluviais. No Porto já existia, em 1900, uma pequena rede de águas pluviais com impermeabilização insuficiente. Todavia, as encostas da cidade eram generosas e permitiam que a água da chuva se escapasse rapidamente para as linhas de água, seguindo para o Douro. Na cidade do Porto o tema do saneamento integrado, sistema em que o esgoto de detritos está separado da rede de escoamento de águas pluviais, passou a ser discutido pelos poderes públicos e pelos sanitaristas na década de 1890. Na época, o sistema integrado era o preferido porque o baixo consumo doméstico de água não garantia a limpeza da rede de esgotos, substituindo-se aquele pela água da chuva, sendo estas responsáveis pelas “correntes” que “varriam os coletores”. Isto também se devia à inexistência, na maior parte das cidades com redes de esgotos, de estações de tratamento de águas residuais[33]. Para limpezas das condutas usavam-se dois processos: por alinhamento de câmaras de visita com a descarga na câmara mais alta de uma corrente de varrer quando necessário; para canalizações mais extensas, “empregavam-se tanques de maior capacidade que intermitente e automaticamente descarregavam-se grandes massas de água”[34].
Sobre a forma como a cidade se libertava dos seus dejetos havia já alguma preocupação por parte de alguns cidadãos mais próximos das políticas de proteção ambiental, ainda num estado incipiente na época. Admitiam esses cidadãos que a solução era perigosa para a saúde pública, poluía o rio e inquinava as praias mais próximas. Este grupo preconizava a purificação do esgoto “pelos processos bacteriológicos artificialmente dirigidos[35] antes da sua descarga para o rio. Adriano Sá era um dos que considerava não ser perigosa para a saúde pública a solução adotada porque, durante o período de esvaziamento dos tanques de Sobreiras na vazante todos os dejetos eram arrastados pela enorme massa de água que os levava para o mar. Também não o assustava a potencial poluição das praias devido à elevada diluição do esgoto na água do rio e do mar, que era superior ao mínimo mais exigente, como o definido na altura pelo State Board of Health of Massachussetts que fixou esse valor em 130. Só contando com a massa de água do rio que arrastava os dejetos, a diluição era superior àquele valor. Adriano Sá admitia que a estadia do esgoto nos tanques de Sobreiras fazia com que os dejetos sólidos fossem solubilizados por “bacteriólise” e “hidrólise”, prontos para serem oxidados quando se misturassem na água do rio. Esta hipótese foi aceite pelas entidades consultadas, como o Conselho de Higiene e a Junta Geral dos Melhoramentos. O autor não considerou que, em 1905, o volume de esgoto descarregado em Sobreiras era muito reduzido quando comparado com o que aquele que foi lançado décadas mais tarde. Honra seja feita a Adriano de Sá que admitia vir a ser necessário considerar os tanques então construídos como reatores anaeróbios que abasteceriam os tanques de oxidação para tratar o esgoto do Porto. Não foi esta a solução adotada, mas aquela seria a melhor solução se o consumo de água dos habitantes da cidade fosse o considerado na época.
Segundo o censo realizado em 1902, o consumo de água por dia e por habitante foi de 23,3 litros, bastante menos do que os 100 litros que era aceite nos compêndios de Higiene da época e que foram considerados no projeto da rede de saneamento. Assim, pelo menos nos primeiros anos de utilização da rede, houve necessidade de efetuar “varreduras” da tubagem com água dos coletores da companhia. Aliás, desde o início do projeto que as canalizações de água para “varrer” foi considerada e passou a ser obrigatória em todo o país, por portaria publicada em 1946, quando a velocidade do caudal máximo de estiagem ou a altura da lâmina líquida do esgoto forem inferiores aos limites mínimos fixados, respetivamente, 0,30 metros por segundo e 25 milímetros.
Inaugurada a primeira fase do saneamento em 1907, a cidade do Porto foi pioneira no país a usufruir deste tipo de infraestrutura e assim se manteve durante alguns anos. A rede então construída constava de 112 km de condutas e um número muito reduzido de ramais de ligação a prédios. O mérito desta obra não foi, durante muitos anos, reconhecido pelos habitantes da cidade que mantinham resistência ao pagamento de taxas e serviços que resultavam da ligação à rede de água e à de saneamento, despesas que os proprietários dos prédios remetiam para os inquilinos, na maioria dos casos com reduzida capacidade financeira. Estas despesas foram consagradas no Regulamento de Instalação do Saneamento Urbano na cidade do Porto publicado em 1903 e atualizado por diversas vezes nos anos seguintes. Para se ter a noção do grau de incumprimento desse regulamento, dos cerca de 20.000 prédios abrangidos, em 1928, pela rede de saneamento do Porto, apenas 776 estavam a ela ligados apesar de tal ser obrigatório[36]. Como a passividade dos donos dos prédios continuasse, a pedido da CMP, é publicado pelo Governo o Decreto 16:417 que impunha a obrigatoriedade de ligação à rede pública de saneamento. Como este decreto em pouco resultou, foi promulgado, em 1934, o Decreto-Lei n.º 23:875 que revogava o anterior e concedia à Câmara o direito de executar as ligações de esgotos por conta dos proprietários. Estes deveriam solver a dívida contraída com a edilidade pagando até doze prestações acrescidas de juros.

Figura 10 – Tampa de saneamento instalada junto às Escadas das Virtudes no período 1903-1907.

Para impulsionar as ligações às redes de água de água e saneamento foram, em 1930, três anos depois do resgate da “Companhia”, formalmente criados os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, SMAS, que assumiram a responsabilidade pelas obras de distribuição de água e pelo saneamento. Face ao incumprimento reiterado, os SMAS viram-se obrigados a adjudicar, por concurso, as obras sanitárias interiores e sua ligação à rede do saneamento dos prédios situados na área servida pela rede cujas obras não foram realizadas pelos proprietários. Previa-se que fossem ligados e saneados cinco mil prédios por ano. A história mostra que tal desejo não foi satisfeito. Cinco anos depois, dos 25.000 prédios existentes na área da rede de saneamento só 2.178 estavam ligados ao saneamento.
Para expandir o uso da rede de saneamento do Porto, a “Empresa de Melhoramentos Citadinos do Norte”, constituída com capitais luso-espanhóis, encarregou-se de efetuar as ligações dos prédios aos coletores da rede para que todos os órgãos do sistema atingissem o pleno funcionamento. O avanço da solução adotada foi aumentando a credibilidade do saneamento do Porto, levando a população a aceitá-lo e considerá-lo como o mais importante contributo no combate à insalubridade da cidade.
Em 1941, o governo da nação procurou, através da publicação do Decreto-lei 31.674 de 22 de novembro desse ano, reforçar os poderes das Câmaras Municipais passando a ser obrigatório “em todas as capitais de distrito, cabeças de concelho e outras povoações onde fossem implantadas rede de saneamento, estabelecer em todos os prédios construídos ou a construir as instalações necessárias a um  completo saneamento desses edifícios, devendo estar ligados à respetiva rede de esgotos. Este Decreto-lei transferia para o inquilino as despesas com as taxas de ligação e conservação decretadas pelas câmaras municipais e as despesas tidas com as obras. O inquilino em falta podia ser despejado.
Na década de 1940-50, os SMAS procuraram expandir a rede de saneamento para a zona da Foz do Douro, destacando-se a instalação de um novo coletor sobrepressão entre o Castela do Queijo e Sobreiras. Em 1964, a rede de saneamento estendia-se por 224 km, estando a ela ligados 22.224 prédios. Nas décadas seguintes a rede desenvolveu-se para norte com a instalação de um novo coletor, neste caso em canal, entre o Hospital de São João e Sobreiras. Em 1974, a cidade dispunha de 220 km de coletores, valor que subiu, em 1998, para cerca de 400 km. Em 1981, o Instituto Nacional apontava o valor de 81% para a taxa de cobertura da rede de saneamento, valor duvidoso já que, em 2001, os rios e ribeiros da cidade transportavam a carga orgânica equivalente a cerca de 50% dos habitantes equivalentes do Porto. A zona leste da cidade apenas recebeu os benefícios da rede de saneamento a partir da década de 1990. Foi nesta altura que se projetaram as duas estações de tratamento de águas residuais (ETAR), tendo-se inaugurado, em 2000, a do Freixo, com uma capacidade para tratar os esgotos de 170.000 habitantes equivalentes, e, em 2003, a de Sobreiras com capacidade para 200.000 habitante- equivalentes. A capacidade total das estações de tratamento dos esgotos ultrapassa, atualmente, em muito as necessidades da cidade, com a agravante que a ligação de todos os edifícios está longe de ser alcançada.
Pela sua importância e romantismo e por ser um hino dedicado à cidade, transcrevemos, com adaptações, um artigo publicado, em 27/10/14, no Jornal de Notícias, por Tiago Rodrigues Alves, com o título “Porto – Saneamento chega a Bairro do Porto ao fim de 128 anos”: “O Bairro Herculano, no Porto, vai ter ruas renovadas e ligações à rede de saneamento. Na ilha do século XIX moram mais de 400 pessoas. Alguns ainda usam a casa de banho comunitária e os balneários das Fontainhas.
O piso desnivelado e irregular, as constantes falhas de água, o cheiro a fossa e as ligações diretas ao saneamento do Bairro Herculano, na Sé, têm os dias contados. Depois de décadas e décadas de espera, a Câmara e a 2Águas do Porto” vão meter as mãos à obrar e trazer para o século XXI o histórico bairro que já conta 128 anos.
O presidente das Águas do Porto comprometeu-se a apresentar um projeto dentro de quatro meses para uma intervenção de fundo que inclua uma ligação à rede de saneamento e a modernização da rede de água", anunciou o presidente da União das Freguesias do Centro Histórico do Porto. António Fonseca revela que recentemente fez uma visita ao bairro com a vereadora que gere a Via Pública, Cristina Pimentel, e o presidente da Águas do Porto, durante a qual ambos “de inteiraram da necessidade de uma grande intervenção.
Além das ligações às redes de água e saneamento, as obras também incluem a requalificação das estreitas e irregulares de pedra ruas que condicionam gravemente a mobilidade dos residentes mais idosos e até a circulação de ambulâncias.
Apesar de ainda não ter dados de arranjo, António Fonseca garante que este "é, obviamente, um projeto a realizar", assegurado que os trabalhos serão iniciados "ou mais rapidamente possível". "Isso foi assumido pelo presidente das Águas do Porto e pela vereadora", contou.
"Este é um bairro bonito e limpo do casco histórico da Sé que nunca teve uma intervenção no fundo. A cidade cresceu e se esqueceu dele", considere a autarca.
O Bairro Herculano (entre as ruas de Fontainhas e Alexandre Herculano) foi acabado em 1886. Seguindo o modelo de ilhas, com casas de um e dois andares, as casas de banho eram comunitárias e não tinha balneários”. Concluam esta notícia lendo a reportagem “O Bairro Herculano já não tem portões, mas continua a ser um segredo bem guardado na Invicta” em https://bit.ly/2X7p913.

Recorda-se, sem comentários, uma frase escrita pelo historiador Magalhães Basto: “que ainda, em 1936, os portugueses continuavam igualmente a cuspir por toda a parte apesar de sermos muito delicados.”






[1] A área ocupada pela civilização harapeana pertence, hoje, ao Paquistão, parte da Índia e Afeganistão. A denominação da civilização deriva do nome de uma das suas cidades: Harappa.
[2] A vacina conta a varíola foi descoberta, em 1796, por Edward Jenner, médico inglês, quando verificou que as mulheres ordenhadoras contaminadas com a varíola benigna das vacas não sofriam da varíola humana. O nome vacina pode ter tido origem no termo vaca porque ela era obtida a partir da pústula extraída das úlceras das tetas das vacas atacadas pela doença “Cowpox” ou “vaccinia”, varíola bovina.
[3] (Pinto, 1880: 20 - 21) - Pinto, A., 1880, Breves considerações a propósito do saneamento das cidades, Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Imprensa Commercial, Porto.
[4] Pinto, 1880: 36
[5] Francisco Ribeiro da Silva, 1985, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder, vol. II, Dissertação de doutoramento em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto: 24 (nota de rodapé 1).
[6] Ata da Sessão de 4 de Outubro de 1391, Documentos e Memórias para a História do Porto, II, “Vereaçoens”, 1390 – 1395, Notas de A. De Magalhães Bastos, Arquivo Histórico, Câmara Municipal do Porto, 1985: 113. Texto original: “Ordinhaçom das dalas priuadas - E logo no dicto logo perante os sobre ditos foy dito que alguuns vizinhos da dita Cidade faziom/ dalas e priuadas nos camjnhos e Ruas e veelas pubricas per vnde se seruyom os mora/dores da dita Cidade o que Era gram dano e gram uergonça da dita Cidade que olhasem sobre/ ello ca esto Era contra a hordinhaçom que sobre tal Razon he feita E os sobre ditos visto/Esto acordarom e mandarom a Joham vicente procurador do dito concelho que fose logo saber parte/ pela dita Cidade vnde as ditas priuadas e ladas (sic) estauam e as fezese desfazer doie/ a três dias e lho mandase apregoar e nom as querendo tirar ataa o dito dya que aqueles que as/ nom tirasem que pagase cada huum pêra o Concelho L libras cada huum e desto vicente doniz de Pinhel/ Pedro huum stormento testemunhas as sobre ditqs Eu Vasco Martins tabaliam esto screvy.”
[7] Dalas – sulcos que garantem o escoamento das águas.
[8] Acta da Sessão de 9 de julho de 1392, Documentos e Memórias para a História do Porto, II, “Vereaçoens”, 1390 – 1395, Notas de A. De Magalhães Bastos, Arquivo Histórico, Câmara Municipal do Porto, 1985: 145-146; 425.
[9] Transcrição do Livro 1.º Atas das Vereações a fl. 11 v.º por Ricardo Jorge, 1988: 88. Texto original: “Todos os sobreditos acordarom que em razom da hordenaçom do Ifante que manda que todos alinpem as esterqueiras e ruas sob certa pena que lhe seja posta acordarom que esta pena seja de vº reais e cada huum que o nom fezer como lhe for mandado.”
[10] Acta da Sessão de 29 de Dezembro de 1401, Documentos e Memórias para a História do Porto, XL, “Vereaçoens”, 1401 – 1449, Livro 1, Notas de J. A. Pinto Ferreira, Arquivo Histórico, Câmara Municipal do Porto, 1985: 73-74. Texto original: “E outrossy os sobreditos acordarom que as priuadas que estam/sobre o muro da placa da Ribeira que era acordado/que sse desfezesem que estem quedas e que as nom dês/façam por quanto diserom que eram pertecentes e proueyto/sãs no dito logo.”
[11] Esta pipa era transportada num caro de bois que foi parodiado como Carro do Saneamento no desfile de Carnaval de 1905 organizado pelo Clube Fenianos Portuenses. Em 1905, a construção da rede de saneamento do Porto levava já dois anos (ver fig.4).
[12] Ricardo Jorge, Demografia e hygiene da cidade do Porto – clima, população, mortalidade, Câmara do Porto, Porto, 1899: 101.
[13] Francisco Ribeiro da Silva, 1985, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder, vol. II, Dissertação de Doutoramento em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pp. 723-729.
[14] Ricardo Jorge, Saneamento do Porto – Relatório apresentado à Comissão Municipal de Saneamento, Typographia de António José da Silva Teixeira, Porto, 1888: 104.
[15] Alfredo Lobo das Neves, 1903, Varíola no Porto – 1893-1903, Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Typografia Occidental, Porto: 39.
[16] Ricardo Jorge, 1888: 9
[17] Paula Guilhermina Fernandes, Habitação e trabalho no Porto da época do cerco: o Bairro de Santa Catarina. Análise Social, vol. XXXV (156), 2000, 511-545
[18] Fernandes, 2000: 517.
[19] Jorge, R., 1899, Demographia e Hygiene da cidade do Porto – clima, população e mortalidade, Câmara Municipal do Porto.
[20] Jorge, R., 1888, Saneamento do Porto, Typographia de António José da Silva Teixeira, Porto.
[21] A primeira proposta sugeria a realização de um inquérito sobre o estado sanitário da cidade para recolher informações sobre fossas e latrinas, esgotos, estrumes e estrumeiras, águas, solo, estatística da mortalidade da população, condições sanitárias das ilhas, e, finalmente, avaliação da legislação dedicada à questão sanitária. Seguia-se a proposta para a organização de um serviço regular de extração pneumática das imundícies das fossas. A terceira proposta sugeria a criação de um serviço de limpeza viária e remoção de lixo. Terminava propondo a disseminação pela cidade de mictórios higiénicos e de latrinas públicas com todos os requisitos sanitários.
[22] Alves, J. F., 2008, Ricardo Jorge e a saúde pública em Portugal – um “apostolado sanitário”, Arquivos de Medicina, 22(2/3):85-90.
[23] Ferraz, 2008: 97. - Ferraz, A., R., 2008, Ricardo de Almeida Jorge – médico e humanista portuense, higienista intemporal, Arquivos de Medicina, 22(2/3): 91-100.
[24] Alfredo Lobo Neves, 1903, Varíola no Porto – 1893-1903 (Subsídios para o seu estudo), Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Typographia Occidental, Porto: 3.
[25] Ricardo Jorge, 1988, Saneamento do Porto – Relatório apresentado à Comissão Municipal de Saneamento, Typographia de António José da Silva Teixeira, Porto, 1888: 21.
[26] Álvaro Cândido Furtado de Antas, 1902, Insalubridade do Porto, Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Officinas do “Commercio do Porto”,Porto.
[27] Jorge, 1888: 103-104.
[28] Aureliano Pinto, 1880, Breves considerações a propósito do saneamento das cidades, Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Imprensa Comercial, Porto.
[29] Jorge, 1888: 26.
[30] Artigo 1º do anúncio do concurso para o saneamento do Porto transcrito por Brandão, P. A. & Piqueiro, F., Interceptor Douro – Sistema centenário de saneamento da cidade do Porto, 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente [2011], FEUP, ISBN 978-989-95557-5-4: 59.
[31] Adriano de Sá, 1905, O novo sistema de exgottos do Porto, Separata da Revista Scientífica “Porto Médico”.
[32] Para melhor conhecer o projeto desenvolvido recomendamos a leitura, para além da publicação do artigo de Adriano de Sá, dos seguintes artigos: 1) Mário Bruno Pastor, 2010, A primeira fase das obras do sistema de saneamento separado na cidade do Porto. 1903-1907. O sistema Shone, Arqueologia Industrial, 4.ª Série, VI (1,2), 31-43; 2) Paula Alexandra Brandão e Francisco Piqueiro, 2011, Interceptor Douro - Sistema centenário de saneamento da cidade do Porto, 6.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente, [2011], FEUP, ISBN 978-989-95557-5-4
[33] Mário Bruno Pastor, 2010, A primeira fase das obras do sistema de saneamento separado na cidade do Porto. 1903-1907. O sistema Shone, Arqueologia Industrial, 4.ª Série, VI (1,2), 31-43
[34] (Sá, A., 1905, O novo systema de exgottos do Porto, Separata da Revista “Porto Médico”: 6)
[35] Sá, 1905: 22
[36] Azeredo Antas e Manuel Monterroso, 1934, A salubridade habitacional no Porto (1929 – 1933), Inspeção de Saúde do Porto, Direção Geral de Saúde, Imprensa Nacional, Lisboa: 6.