terça-feira, 30 de agosto de 2016

parte II

  
Face aos testemunhos encontrados nas últimas décadas, muitos e credenciados autores são de opinião que a origem da cidade do Porto reside num castro da idade do bronze (período que vai de 3.000 a.C. até cerca de 1.200 a.C.), que se formou no morro, hoje conhecido por Morro da Sé, identificado como Pena Ventosa, provavelmente assim chamado pelos fortes ventos que o atingiriam. Este morro reunia condições excecionais para a criação de um povoado fortificado com capacidade para controlar uma bacia hidrográfica e zonas de aptidão agrícola e de exploração de recursos naturais [1]. A fortificação da povoação traduziu-se na construção, no século II a.C., da primeira muralha do Porto.

Pormenor da maqueta do Porto medieval: morro da Sé com a sua igreja e paço. 
Fonte: Arquivo Municipal do Porto. Cota F-C/CMP/8/279(6) (11).

Aspecto da cerca primitiva em torno do Morro da Sé

O romano Décimo Június Brutus, comandando o seu exército, procurou e conseguiu, a partir de 138-136 a.C., submeter ao poder de Roma a região entre Douro e Minho, tomando posse do morro de Pena Ventosa [2], em 74 a.C., que se manteve até à invasão da região pelos Suevos. Como aconteceu em todos os territórios ocupados, os novos ocupantes romanizaram o aglomerado, que entretanto adquiriu o nome de “Castrum Novum Portucale”, mais tarde documentado na forma Portucale castrum novum. A área do aglomerado não ultrapassaria nessa época os três hectares e meio. No fundo do morro, na margem do Rio Douro, desenvolveu-se o “Portus Cale”, a atual Ribeira, embarcadouro que foi o grande motor do desenvolvimento da cidade.

Rua das Aldas uma das primeiras da cidade do Porto
 
Rua da Pena Ventosa uma das primeiras da cidade do Porto e ainda cheia de vida

Em 409, a pedido do ocupante, os suevos e outros povos entraram na Península Ibérica e por cá ficaram devido ao esvaziamento da autoridade romana. A ocupação sueva não durou muito tempo: apenas um século e meio, foram expulsos pelos Visigodos que, por sua vez, acabaram por sucumbir à ocupação Muçulmana no ano de 711. Os muçulmanos descreveram os hábitos daqueles que viviam na povoação ocupada, entre os quais destacavam a má prática de não se lavarem nem mudarem de roupas. A luta contra a ocupação muçulmana da Península Ibérica teve início, em 722, nas Astúrias. Apenas em 868, surgiu uma importante figura da cidade do Porto: Vimara Peres, que, auxiliado por cavaleiros da região, se encarregou de integrar o povoado no novo poder e se tornou o primeiro conde de Portucale. Foi a partir dessa data que a cidade assumiu um papel de destaque no desenvolvimento da região entre o Douro e o Minho e que esteve na origem do Condado Portucalense.

Estátua de Vimara Peres que se encontra junto da Sé do Porto

A descrição que fazemos do desenvolvimento da cidade do Porto até à chegada de Vimara Peres justifica-se como enquadramento de um outro fator que foi decisivo para a fixação do Homem na Pena Ventosa e no Morro da Cividade, para onde se estendeu o primitivo povoado, morro este esventrado para ali passar a Avenida da Ponte. Esse fator é, nem mais nem menos, a água, abundantemente disponível perto daqueles morros, porque na constituição do seu subsolo predominava o “granito do Porto”, que permitia a infiltração da água no maciço rochoso e a acumulação de reservas a acessível profundidade. Além de abundante, a água que naqueles tempos se alojava nos mananciais teria boa qualidade, obviamente reconhecida pelo tipo de materiais que com ela contactava e, sobretudo, pela manifesta falta, ao contrário do que passou a acontecer nos tempos posteriores, de poluidores renitentes. Recordemos que naqueles tempos a impermeabilização do solo era limitadíssima, garantindo que a maior parte da água da chuva se infiltrasse no subsolo. À água de profundidade, acrescentava-se a do Rio da Vila que estava a um passo dos dois morros; esta corrente de água permanente, que deslizava a céu aberto em direção ao Douro pelo vale da Sé, não sofria, naqueles séculos, os maléficos efeitos da ocupação excessiva do solo e do desenvolvimento de pequenas indústrias, como a da curtimenta de peles.

Escarpa dos Guindais – as escorrências de águas
 pela escarpa revivificam a natureza

Quem passeia ao longo da marginal do Douro entre as pontes de D. Luiz I e de D. Maria Pia durante o mês de agosto pode reparar a presença na Escarpa, dos Guindais de algumas manchas de vegetação verde no meio da secura de verão. A aproximação a essas zonas revela a existência de exsurgências de água no maciço granítico, formando fontes naturais e regos com água mais ou menos abundantes. Se subirem ao Passeio das Fontainhas, admirarão o brotar de água, com origem no Manancial das Fontainhas, na vandalizada Fonte do mesmo nome e dos seus lavadouros. A escarpa dos Guindais, como vimos riquíssima em água, alimentou, algumas fontes e chafarizes que entretanto desapareceram: Aguada, Carvalhinho, Ribeira, Areia ou Guindais, Lágrimas e/ou Malmeajudas, a seguir recordadas.

Escarpa dos Guindais – quem teria a coragem de ali fazer uma horta

A Fonte da Aguada ficava junto ao Douro, próximo das escadas da Aguada que se situam no extremo da atual Rua Gomes Freire, no limite da alameda das Fontainhas. Por elas se desce até à Avenida de Paiva Couceiro. Ao longo da escada, abaixo da antiga linha do caminho de ferro entre Campanhã e a Alfandega, se pode ver o brotar de água das fendas do granito formando pequenas fontes aproveitadas para a rega de pequenas hortas espalmadas nas fragas. Perto destas escadas, terá existido a Fonte da Aguada, reconstruída em 1785, no caminho que seguia para o Esteiro de Campanhã. Era abundante a água que dela brotava, alimentando também lavadouros. A sua água, que era límpida, pura e cristalina, servia para abastecer os barcos que traziam ou levavam algumas mercadorias para o Porto. Segundo Germano Silva, como a água desta fonte era de elevada pureza, quando embalada em barris, a sua qualidade era garantida por longos períodos, mesmo quando os barcos sulcavam paragens com temperaturas mais altas. Em setembro de 1863, Gavand determinou a sua dureza total, ou grau hidrotimétrico ou crueza como se dizia então, da água desta fonte, verificando que ela era macia (para os químicos, a dureza total era de 56 mg/L CaCO3).

 
Escarpa dos Guindais – fonte improvisada

O Chafariz da Ribeira, localizada no centro da Praça da Ribeira, foi construído em 1678. Era alimentada a partir do Manancial Malmeajudas através da Fonte a ele associado e referida por Manuel Pereira de Novais como Fonte dos Guindais. Durante a remodelação da Praça da Ribeira, concretizada entre 1776 e meados da década de 1780, o chafariz foi desmantelado para facilitar o intenso tráfego de carros de bois e pessoas que acorriam à descargas dos barcos, tendo sido substituído pela Fonte da Ribeira cuja edificação terminou em 1783.

A Fonte de Malmeajudas, com origem no manancial do mesmo nome, localizava-se na zona dos Guindais, provavelmente próximo ou mesmo na então Calçada das Corticeiras. Pouco se sabe desta fonte, embora exista uma referência à sua existência em 1669, ano em que foi adjudicada a obra da condução da sua água para o Chafariz da Ribeira. Esta reduzida informação pode-se integrar no parágrafo seguinte, e daí resultar a hipótese de que esta e a das Lágrimas são a mesma fonte.

Calçada das Carquejeiras, antes da Corticeira

Para Aurélio de Oliveira [3], a Fonte das Lágrimas, construída em 1745, era um fontenário ornamental desenhada por Nazoni para a Câmara do Porto. Existem muitas dúvidas sobre a sua localização, podendo ter estado entre a Ribeira e a Quinta da China, admitindo-se até que ela ter-se-á chamado de Malmeajudas. Esta fonte ficava junto ao rio Douro e por ter água incorrupta, servia para abastecer as embarcações que iam para o Brasil e outras paragens [4]. Este atributo não lhe é reconhecido por J. Bahia Junior [5], que sobre a Fonte da Areia testemunhou: “a Fonte da Areia ou dos Guindais, antigamente conhecida pelo nome de Fonte das Lágrimas, apenas pudemos colher a informação de que já existia no ano de 1669, como consta da Memória do Padre Balthazar Guedes, já citada. Parece que a primitiva fonte era no ponto em que ainda se vê um pedaço do arco por baixo das escadas dos Guindais”. Completa a descrição da sua localização adiantando que aquela fonte estava “situada no Cais da Ribeira, tem a sua bica, emergindo do paredão que forma a Avenida da Ponte, formada por um tubo de ferro de grande calibre que a trás encanada desde a sua nascente que fica do lado oposto da Avenida por baixo das Escadas do Codeçal e à entrada da Viela das Panelas, no ponto em que se vê um arco de pedra meio soterrado... Parece ter sido aí a primitiva Fonte dos Guindais, encanada depois de concluída a Avenida da Ponte para o Cais da Ribeira”. Fica a questão: As denominações de Malmeajudas e das Lágrimas representam a mesma Fonte? A informação dada por Bahia Júnior sobre a localização da primitiva fonte é confirmada por Horácio Marçal [6], situando a nascente no subsolo de um armazém da Lada, Junto ao Postigo da Areia.

Fonte da Areia ou dos Guindais. Fonte: J. Bahia Junior, 1909

Sobre a qualidade da água desta fonte, em 1909, vale a pena transcrever o comentário Bahia Júnior: junto da nascente “há inúmeros bolos fecais e todo o local está encharcado em urina, o que se coaduna bem com o que ali ouvimos dizer aos moradores: “...Se nos dessem água boa para aqui, que esta até sabe a mijo!” Isto é muito natural visto como do nível do solo à nascente não deve haver distância superior a 3 metros”. Marçal refere que foi a má qualidade da água que a levou ao seu desmantelamento. A caracterização microbiológica, realizada por Bahia Júnior em 1908/9, comprovou a péssima qualidade da água desta fonte, imprópria para consumo.

Na Quinta da Fraga, junto da então Calçada da Corticeira, hoje das Carquejeiras, em homenagem às mulheres que por ela subiam carregando grandes molhos de carqueja descarregados pelos barcos que vinham do interior, ficava a Fábrica de Louça do Carvalhinho que mudou para as Devesas, Vila Nova de Gaia, no final do século XIX. O nome da fábrica foi inspirado na Capela do Senhor do Carvalhinho, infelizmente em ruínas. Junto ao portão da fábrica situava-se a Fonte do Carvalhinho que recebia a água de uma mina aberta no granito que se encontrava nas suas traseiras. A mina estava protegida por uma porta.

Fonte do Carvalhinho, vendo-se a porta de entrada para a mina (P) que tem uma 
direção perpendicular à entrada e paralela ao frontispício da fonte. Fonte: J. Bahia Junior, 1909


Ruínas da Capela de Senhor do Carvalhinho

Sob o ponto de vista microbiológico, Bahia Júnior considerou, em 1908/9, que a sua qualidade estava no limite das águas toleráveis mas que devia ser condenada porque ele reconheceu, na visita que fez à mina da fonte, a existência de escorrências que, acrescentamos nós, podiam contaminar a água. Nos nossos dias ela seria condenada por ser imprópria para consumo humano. Em setembro de 1863, o valor da dureza total da água desta fonte era moderado (116 mg/L CaCO3) (Gavand, 1864).

Dos morros da Sé e da Cividade seria mais fácil para os seus habitantes acederem à água na zona onde hoje temos a Alameda das Fontainhas e onde, séculos depois, se veio a cavar a mina que veio a alimentar a Fonte das Fontainhas. A propósito do Manancial das Fontainhas, Bahia Júnior atribuiu a denominação de Fontainhas aos “muitos choros d'água que rebentavam em diversos pontos deste local”. Considerava-o como muito antigo, havendo dele notícias desde 1588, e com abundante água. Terá sido este manancial que levou a construir naquele local o Hospital dos Gafos ou Lázaros, para que as suas águas fossem usadas na limpeza do dito estabelecimento.

Manancial da Fontainhas, abertura da sua colateral no ramo principal. 
Fonte: J. Bahia Junior, 1909

O Manancial das Fontainhas situa-se nos fundos dos terrenos localizados no monte da Praça da Alegria [7], acima da Rua Gomes Freire, onde existiu um mercado de peixe, legumes e fruta. Diogo Teixeira [8] cita Baltasar Guedes na sua Memória de 1669 na qual se dava a indicação da importante disponibilidade de água deste manancial que tinha no verão três anéis de água [9], sendo dois para o Colégio da Companhia de Jesus e uma para o povo. A água foi cedida pela Câmara ao Colégio a seu pedido, que, segundo Bahia Júnior, a troco de fazerem “gratuitamente aos Lázaros os sermões quaresmais” e de “construírem à sua custa o tanque de pedra de dez palmos de comprido e oito de largo para os Lázaros se lavarem e em baixo uma pia que servisse para bebedouro do gado”. Parece que os Padres foram maus cumpridores e obrigados a repor várias vezes o acordado. Por Alvará Régio de 1802, foi aprovada a construção da Fonte e Tanques das Lavandeiras, ainda existentes, tendo-se determinado a conclusão desta obra, em 1830.

Fonte das Fontainhas. Fonte: J. Bahia Junior, 1909

Fonte das Fontainhas nos nossos dias onde se destaca os efeitos dos atos de vandalismo

Bahia Júnior explorou, em 1908/9, as minas do manancial e a pia divisória que fornece a água às duas bicas da fonte, tendo ficado impressionado com “tão grande porcaria e imprevidência”. A pedra que fechava a pia divisória não era cimentada e, à sua volta, abundavam “os bolos fecais” e a urina encharcava. Ao longo da mina reconheciam-se “extensas infiltrações negras” e do teto da mina, “em ocasiões de pouca chuva mesmo, goteja em abundância”. Após a concretização de análises microbiológicas em amostras colhidas nas minas e na fonte, o autor admitiu que os resultados obtidos não são concordantes com os dados topográficos, que eram péssimos, enquanto a qualidade da água era sofrível. Justificou a anomalia com a “falta de chuvas que que carreassem produtos de inquinação”. Nos nossos dias, aqueles resultados levar-nos-iam a rejeitar aquela água como potável.

Esquema do trajeto das minas do Manancial das Fontainhas,
 segundo Bahia Júnior, 1909, pág. 98

A Fonte das Fontainhas localiza-se na Alameda do mesmo nome e está voltada para o Rio Douro, recebendo a água de duas arcas do manancial, uma delas próxima da fonte e a outra na Praça da Alegria. A Fonte, como a conhecemos, terá sido posta ao serviço do povo em 1830, mas existe uma Memória do Padre Simão Duarte de Oliveira, de 1669, na qual se diz que a fonte (primitiva?) terá sido feita quando se fundou o Hospital dos Gafos e dos Lázaros e que ficava “retirada das habitações e recreio do povo, da cidade, onde vai tomar sol de inverno e de verão beber excelente água” [10]. Para além da caracterização microbiológica da sua água feita por Bahia Júnior, devemos acrescentar a determinação da dureza total da água da Fonte feita por Gavand, em setembro de 1863, que registou o valor de 86 mg/L CaCO3, valor muito próximo da dureza total da água atualmente servida pelas Águas do Porto, E.M., correspondendo a água macia.

Lavadouros das Fontainhas

Desde finais do século XX que a Fonte e a Alamedas das Fontainhas estão ligadas aos festejos de São João, servindo, há muitos anos, de cascata sanjoanina.  










[1] Joana Sequeira. 2010. História do Porto – Como nasce uma cidade. Das origens ao Condado Portucalense. QN – Edições e Conteúdos, S.A., Matosinhos
[2] A tomada do povoado terá usado o topónimo Cale, devido ao nome do povo que habitava o Norte do Douro – os calaicos – que mais tarde deram nome à região da Calécia ou Galécia.
[3] Oliveira, A.  1984. Um inédito de Nazoni: a Fonte das Lágrimas (na cidade do Porto). Lucerna,  Número extraordinário: colectânea de Estudos de Homenagem a D. Domingos de Pinho Brandão. Centro de Estudos Humanísticos da Delegação do Norte do Ministério da Cultura. Porto., pp. 379-386.
[4] Ferreira Alves, J. J. B. 1988. O Porto na época dos Almadas – Arquitetura, obras públicas. (Volumes I e II). Dissertação de doutoramento em História de Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[5] Bahia Junior, J. 1909. Contribuição para a hygiene do Porto. Analyse sanitária do seu abastecimento em água potável. II – Mananciais do Campo Grande, Bispo e Freiras, Cavaca, Camões, Virtudes, Fontainhas, Praça do Marquez de Pombal e Burgal; fontes suas derivadas e fontes de nascente privativa. Dissertação Inaugural apresentada à Escola Medico - Cirúrgica do Porto.
[6] Marçal, H., 1968, O abastecimento de água à cidade do Porto e à Vila de Matosinhos, Separata do Boletim da Biblioteca Pública Municipal de Matosinhos, n.º 15.
[7] Nos nossos dias a praça da Alegria é bastante mais reduzida mas ainda tem um pequeno mercado.
[8] Diogo Emanuel Pacheco Teixeira.  2011. O Abastecimento de Água na Cidade do Porto nos Séculos XVII e XVIII.  Aquedutos, Fontes e Chafarizes. Dissertação de Mestrado em História da Arte Portuguesa Faculdade de Letras Universidade do Porto
[9] O caudal de água que brotava das nascentes expressava-se em penas de água, anéis e manilhas, que estavam relacionados com a quantidade de água que atravessava um orifício circular com a espessura, respetivamente, de uma “pena de pato”, de um “dedo” e de um “punho”. No Porto, 1 pena de água correspondia a 534 litros por dia quando a água era fornecida a particulares a partir de um manancial público, e 636 litros por dia para o caudal das fontes e mananciais municipais. Uma manilha equivalia a 16 anéis, e um anel a oito penas.
[10] Oliveira Ramos, L., 2000, História do Porto, Porto Editora, 3º ed., Porto.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

parte I

A água e a cidade do Porto


No princípio...


Não é necessário recuar muitos séculos para saber como as populações das cidades se abasteciam de água, pelo menos, até ao final do século XVIII. Basta visitar uma das muitas aldeias portuguesas que ainda não possui rede pública em que o abastecimento de água se faz por meio de poços, minas, ribeiros e bolhões, em muitos casos encaminhando-a a tanques ou arcas, fontes e chafarizes de uso público. Para servir as grandes cidades, há séculos que o homem desenvolve monumentais obras hidráulicas, com destaque para os aquedutos desenvolvidos pelos romanos que os introduziram na Península Ibérica, tão presentes e, por vezes, tão sacrificados no nosso país.


Devido à elevada pluviosidade e a geologia do seu subsolo, a cidade do Porto, nos primórdios da sua existência, não teve necessidade de recorrer a opulentas obras para o seu abastecimento. Os mananciais de Mijavelhas e o das Fontainhas eram mais do que suficientes para as necessidades da cidade. Este último era preferido porque estava próximo e a sua água era, então, considerada de excelente qualidade e, segundo Tito de Bourbon e Noronha, na sua dissertação inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em 1885, “a água predilecta de D. Miguel I”. Infelizmente, aquele autor reconheceu que a sua qualidade se degradou e “não corresponde à fama que a apregoa”. Tito de Noronha caracterizou quimicamente a água daquele manancial e os resultados que publicou mostram, pelo seu elevado teor de cloretos, que ela já sofria de forte contaminação. Como naquela época ainda não se faziam no Porto exames bacteriológico à água, aquele tipo de resultados não alarmavam ninguém. O manancial das Fontainhas abastecia a Fonte das Fontainhas e lavadouros anexos, o Convento de Santa Clara e a fonte do Colégio de S. Lourenço da Companhia de Jesus, vulgarmente conhecido como dos Grilos. Ainda se pode ver nas Escadas das Verdades um arco do aqueduto que abastecia a Mitra e as fontes que existiam em Pena Ventosa para servir o povo.

O arco do aqueduto das Escadas da Senhora das Verdades, que conduzia a água ao Colégio dos Grilos.

São conhecidas preocupações oficiais sobre a qualidade da água das fontes e chafarizes do Porto desde os finais do século XIV, não pela sua origem mas sim pelo que se fazia nas fontes e espaços envolventes. Os maus hábitos higiénicos dos tripeiros são ancestrais. Das atas das Sessões da Vereação do Município, oportunamente publicadas pelo Gabinete de História da Cidade da Câmara Municipal do Porto, destaca-se a de 9 de julho de 1932 (Vereaçoens – 1390 -1395, pág.s 145 – 146) donde se transcreve, após adaptação: “…os ditos Juiz vereadores homens bons acordaram que por quanto nos chafarizes e fontes da dita cidade se faziam grandes sujidades de muitos lixos que em elas se lançavam e dos panos que dentro em elas se lavavam por a qual razão se seguia grandes danos às gentes e bestas...” e ordenaram que “…qualquer que acharem nas ditas fontes e chafarizes lavar panos ou tripas ou outras algumas cousas que por cada vez que em elo achados forem paguem para o Concelho três libras assim nos chafarizes fontes como da redor deles duas braçadas”. Aquela preocupação continua oito anos depois, registando-se na ata de 29 de dezembro de 1401 a exigência de se aplicar as coimas previstas nos Regimentos da Cidade para os casos “das águas deitadas em as ruas como das fontes”. A este propósito, nas Notas e Comentários de A. de Magalhães Basto às atas das “Vereações – anos 1390 – 1395”, desde “1336 que era proibida no Porto “deitar água lixosa ou outro lixo na rua”; e quando, por mandado dos juízes, era “apregoado que não lancem água na rua, se algum aí lançar água limpa das janelas na rua, e cair por alguém, se levará o Alcaide cinco soldos daquele que a lançar, se lhe dele for querelado; se fizer certo o que deita a água que disse três vezes Água vai, antes que a deitasse, não pagará a coima ao Alcaide”. Este costume de lançar águas limpas (e sujas) manteve-se formalmente até ao século XIX, mas o hábito ainda não desapareceu totalmente.

No Museu da Casa do Infante encontram-se os vestígios, descobertos aquando o restauro do Arquivo Municipal do Porto, da Fonte (ou Chafariz?) do “Almazém” que servia, pelo menos em 1357, o antigo “Armazém Régio”, mais tarde conhecido por Alfândega Velha. Sofreu melhorias ao longo dos séculos, com destaque para a que se realizou em 1688, até que o local foi aterrado, em meados do século XVII, após extinção da Casa da Moeda. Alguns autores consideram que, das fontes conhecidas, a Fonte do Almazém é, provavelmente, a mais antiga da cidade.

Fonte do Almazém – resto do tanque, da canalização e das caleiras em granito


Fonte do Almazém – pormenor da sua bica em granito

Continua...