Face
aos testemunhos encontrados nas últimas décadas, muitos e credenciados autores
são de opinião que a origem da cidade do Porto reside num castro da idade do
bronze (período que vai de 3.000 a.C. até cerca de 1.200 a.C.), que se formou no
morro, hoje conhecido por Morro da Sé, identificado como Pena Ventosa, provavelmente
assim chamado pelos fortes ventos que o atingiriam. Este morro reunia condições
excecionais para a criação de um povoado fortificado com capacidade para
controlar uma bacia hidrográfica e zonas de aptidão agrícola e de exploração de
recursos naturais [1]. A fortificação da
povoação traduziu-se na construção, no século II a.C., da primeira muralha do
Porto.
Pormenor da maqueta do Porto medieval: morro da Sé com a sua igreja e paço.
Fonte: Arquivo Municipal do Porto. Cota F-C/CMP/8/279(6) (11).
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Aspecto da cerca primitiva em torno do Morro da Sé |
O
romano Décimo Június Brutus, comandando o seu exército, procurou e conseguiu, a
partir de 138-136 a.C., submeter ao poder de Roma a região entre Douro e Minho,
tomando posse do morro de Pena Ventosa [2], em
74 a.C., que se manteve até à invasão da região pelos Suevos. Como aconteceu em
todos os territórios ocupados, os novos ocupantes romanizaram o aglomerado, que
entretanto adquiriu o nome de “Castrum
Novum Portucale”, mais tarde documentado na forma Portucale castrum novum. A área do aglomerado não ultrapassaria
nessa época os três hectares e meio. No fundo do morro, na margem do Rio Douro,
desenvolveu-se o “Portus Cale”, a atual
Ribeira, embarcadouro que foi o grande motor do desenvolvimento da cidade.
Rua das Aldas uma das primeiras da cidade do Porto |
Em
409, a pedido do ocupante, os suevos e outros povos entraram na Península Ibérica
e por cá ficaram devido ao esvaziamento da autoridade romana. A ocupação sueva
não durou muito tempo: apenas um século e meio, foram expulsos pelos Visigodos
que, por sua vez, acabaram por sucumbir à ocupação Muçulmana no ano de 711. Os
muçulmanos descreveram os hábitos daqueles que viviam na povoação ocupada,
entre os quais destacavam a má prática de não se lavarem nem mudarem de roupas.
A luta contra a ocupação muçulmana da Península Ibérica teve início, em 722,
nas Astúrias. Apenas em 868, surgiu uma importante figura da cidade do Porto:
Vimara Peres, que, auxiliado por cavaleiros da região, se encarregou de
integrar o povoado no novo poder e se tornou o primeiro conde de Portucale. Foi
a partir dessa data que a cidade assumiu um papel de destaque no
desenvolvimento da região entre o Douro e o Minho e que esteve na origem do
Condado Portucalense.
Estátua de Vimara Peres que se encontra junto da Sé do Porto |
A
descrição que fazemos do desenvolvimento da cidade do Porto até à chegada de
Vimara Peres justifica-se como enquadramento de um outro fator que foi decisivo
para a fixação do Homem na Pena Ventosa e no Morro da Cividade, para onde se
estendeu o primitivo povoado, morro este esventrado para ali passar a Avenida
da Ponte. Esse fator é, nem mais nem menos, a água, abundantemente disponível
perto daqueles morros, porque na constituição do seu subsolo predominava o “granito do Porto”, que permitia a
infiltração da água no maciço rochoso e a acumulação de reservas a acessível
profundidade. Além de abundante, a água que naqueles tempos se alojava nos
mananciais teria boa qualidade, obviamente reconhecida pelo tipo de materiais
que com ela contactava e, sobretudo, pela manifesta falta, ao contrário do que
passou a acontecer nos tempos posteriores, de poluidores renitentes. Recordemos
que naqueles tempos a impermeabilização do solo era limitadíssima, garantindo
que a maior parte da água da chuva se infiltrasse no subsolo. À água de
profundidade, acrescentava-se a do Rio da Vila que estava a um passo dos dois
morros; esta corrente de água permanente, que deslizava a céu aberto em direção
ao Douro pelo vale da Sé, não sofria, naqueles séculos, os maléficos efeitos da
ocupação excessiva do solo e do desenvolvimento de pequenas indústrias, como a
da curtimenta de peles.
Escarpa dos Guindais – as escorrências de águas pela escarpa revivificam a natureza |
Quem
passeia ao longo da marginal do Douro entre as pontes de D. Luiz I e de D.
Maria Pia durante o mês de agosto pode reparar a presença na Escarpa, dos
Guindais de algumas manchas de vegetação verde no meio da secura de verão. A
aproximação a essas zonas revela a existência de exsurgências de água no maciço
granítico, formando fontes naturais e regos com água mais ou menos abundantes.
Se subirem ao Passeio das Fontainhas, admirarão o brotar de água, com origem no
Manancial das Fontainhas, na vandalizada Fonte do mesmo nome e dos seus
lavadouros. A escarpa dos Guindais, como vimos riquíssima em água, alimentou,
algumas fontes e chafarizes que entretanto desapareceram: Aguada, Carvalhinho, Ribeira,
Areia ou Guindais, Lágrimas e/ou Malmeajudas, a seguir recordadas.
Escarpa dos Guindais – quem teria a coragem de ali fazer uma horta |
A
Fonte da Aguada ficava junto ao
Douro, próximo das escadas da Aguada que se situam no extremo da atual Rua
Gomes Freire, no limite da alameda das Fontainhas. Por elas se desce até à
Avenida de Paiva Couceiro. Ao longo da escada, abaixo da antiga linha do
caminho de ferro entre Campanhã e a Alfandega, se pode ver o brotar de água das
fendas do granito formando pequenas fontes aproveitadas para a rega de pequenas
hortas espalmadas nas fragas. Perto destas escadas, terá existido a Fonte da
Aguada, reconstruída em 1785, no caminho que seguia para o Esteiro de Campanhã.
Era abundante a água que dela brotava, alimentando também lavadouros. A sua
água, que era límpida, pura e cristalina, servia para abastecer os barcos que
traziam ou levavam algumas mercadorias para o Porto. Segundo Germano Silva, como
a água desta fonte era de elevada pureza, quando embalada em barris, a sua
qualidade era garantida por longos períodos, mesmo quando os barcos sulcavam
paragens com temperaturas mais altas. Em setembro de 1863, Gavand determinou a sua
dureza total, ou grau hidrotimétrico ou crueza como se dizia então, da água
desta fonte, verificando que ela era macia (para os químicos, a dureza total
era de 56 mg/L CaCO3).
O
Chafariz da Ribeira, localizada no
centro da Praça da Ribeira, foi construído em 1678. Era alimentada a partir do
Manancial Malmeajudas através da Fonte a ele associado e referida por Manuel
Pereira de Novais como Fonte dos Guindais. Durante a remodelação da Praça da
Ribeira, concretizada entre 1776 e meados da década de 1780, o chafariz foi
desmantelado para facilitar o intenso tráfego de carros de bois e pessoas que
acorriam à descargas dos barcos, tendo sido substituído pela Fonte da Ribeira
cuja edificação terminou em 1783.
A
Fonte de Malmeajudas, com origem no
manancial do mesmo nome, localizava-se na zona dos Guindais, provavelmente
próximo ou mesmo na então Calçada das Corticeiras. Pouco se sabe desta fonte,
embora exista uma referência à sua existência em 1669, ano em que foi
adjudicada a obra da condução da sua água para o Chafariz da Ribeira. Esta
reduzida informação pode-se integrar no parágrafo seguinte, e daí resultar a
hipótese de que esta e a das Lágrimas são a mesma fonte.
Calçada das Carquejeiras, antes da Corticeira |
Para
Aurélio de Oliveira [3], a Fonte das Lágrimas, construída em 1745, era um fontenário
ornamental desenhada por Nazoni para a Câmara do Porto. Existem muitas dúvidas
sobre a sua localização, podendo ter estado entre a Ribeira e a Quinta da
China, admitindo-se até que ela ter-se-á chamado de Malmeajudas. Esta fonte
ficava junto ao rio Douro e por ter água incorrupta, servia para abastecer as
embarcações que iam para o Brasil e outras paragens [4]. Este
atributo não lhe é reconhecido por J. Bahia Junior [5], que
sobre a Fonte da Areia testemunhou: “a
Fonte da Areia ou dos Guindais, antigamente conhecida pelo nome de Fonte das
Lágrimas, apenas pudemos colher a informação de que já existia no ano de 1669,
como consta da Memória do Padre Balthazar Guedes, já citada. Parece que a
primitiva fonte era no ponto em que ainda se vê um pedaço do arco por baixo das
escadas dos Guindais”. Completa a descrição da sua localização adiantando
que aquela fonte estava “situada no Cais
da Ribeira, tem a sua bica, emergindo do paredão que forma a Avenida da Ponte,
formada por um tubo de ferro de grande calibre que a trás encanada desde a sua
nascente que fica do lado oposto da Avenida por baixo das Escadas do Codeçal e
à entrada da Viela das Panelas, no ponto em que se vê um arco de pedra meio
soterrado... Parece ter sido aí a primitiva Fonte dos Guindais, encanada depois
de concluída a Avenida da Ponte para o Cais da Ribeira”. Fica a questão: As
denominações de Malmeajudas e das Lágrimas representam a mesma Fonte? A
informação dada por Bahia Júnior sobre a localização da primitiva fonte é
confirmada por Horácio Marçal [6],
situando a nascente no subsolo de um armazém da Lada, Junto ao Postigo da
Areia.
Fonte da Areia ou dos Guindais. Fonte: J. Bahia Junior, 1909 |
Sobre
a qualidade da água desta fonte, em 1909, vale a pena transcrever o comentário Bahia
Júnior: junto da nascente “há inúmeros
bolos fecais e todo o local está encharcado em urina, o que se coaduna bem com
o que ali ouvimos dizer aos moradores: “...Se nos dessem água boa para aqui,
que esta até sabe a mijo!” Isto é muito natural visto como do nível do solo à
nascente não deve haver distância superior a 3 metros”. Marçal refere que
foi a má qualidade da água que a levou ao seu desmantelamento. A caracterização
microbiológica, realizada por Bahia Júnior em 1908/9, comprovou a péssima
qualidade da água desta fonte, imprópria para consumo.
Na
Quinta da Fraga, junto da então Calçada da Corticeira, hoje das Carquejeiras,
em homenagem às mulheres que por ela subiam carregando grandes molhos de
carqueja descarregados pelos barcos que vinham do interior, ficava a Fábrica de
Louça do Carvalhinho que mudou para as Devesas, Vila Nova de Gaia, no final do
século XIX. O nome da fábrica foi inspirado na Capela do Senhor do Carvalhinho,
infelizmente em ruínas. Junto ao portão da fábrica situava-se a Fonte do Carvalhinho que recebia a água
de uma mina aberta no granito que se encontrava nas suas traseiras. A mina
estava protegida por uma porta.
Fonte do Carvalhinho, vendo-se a porta de entrada para a mina (P) que tem uma direção perpendicular à entrada e paralela ao frontispício da fonte. Fonte: J. Bahia Junior, 1909 |
Ruínas da Capela de Senhor do Carvalhinho |
Sob
o ponto de vista microbiológico, Bahia Júnior considerou, em 1908/9, que a sua
qualidade estava no limite das águas toleráveis mas que devia ser condenada porque
ele reconheceu, na visita que fez à mina da fonte, a existência de escorrências
que, acrescentamos nós, podiam contaminar a água. Nos nossos dias ela seria
condenada por ser imprópria para consumo humano. Em setembro de 1863, o valor da
dureza total da água desta fonte era moderado (116 mg/L CaCO3)
(Gavand, 1864).
Dos
morros da Sé e da Cividade seria mais fácil para os seus habitantes acederem à
água na zona onde hoje temos a Alameda das Fontainhas e onde, séculos depois,
se veio a cavar a mina que veio a alimentar a Fonte das Fontainhas. A propósito
do Manancial das Fontainhas, Bahia Júnior atribuiu a denominação de Fontainhas
aos “muitos choros d'água que rebentavam
em diversos pontos deste local”. Considerava-o como muito antigo, havendo
dele notícias desde 1588, e com abundante água. Terá sido este manancial que
levou a construir naquele local o Hospital dos Gafos ou Lázaros, para que as
suas águas fossem usadas na limpeza do dito estabelecimento.
Manancial da Fontainhas, abertura da sua colateral no ramo principal.
Fonte: J. Bahia Junior, 1909
|
O
Manancial das Fontainhas situa-se nos fundos dos terrenos localizados no monte
da Praça da Alegria [7], acima da Rua Gomes
Freire, onde existiu um mercado de peixe, legumes e fruta. Diogo Teixeira [8]
cita Baltasar Guedes na sua Memória de 1669 na qual se dava a indicação da
importante disponibilidade de água deste manancial que tinha no verão três
anéis de água [9],
sendo dois para o Colégio da Companhia de Jesus e uma para o povo. A água foi
cedida pela Câmara ao Colégio a seu pedido, que, segundo Bahia Júnior, a troco
de fazerem “gratuitamente aos Lázaros os sermões quaresmais” e de “construírem à sua custa o tanque de pedra de
dez palmos de comprido e oito de largo para os Lázaros se lavarem e em baixo
uma pia que servisse para bebedouro do gado”. Parece que os Padres foram
maus cumpridores e obrigados a repor várias vezes o acordado. Por Alvará Régio
de 1802, foi aprovada a construção da Fonte e Tanques das Lavandeiras, ainda
existentes, tendo-se determinado a conclusão desta obra, em 1830.
Fonte das Fontainhas. Fonte: J. Bahia Junior, 1909 |
Fonte das Fontainhas nos nossos dias onde se destaca os efeitos dos atos de vandalismo |
Bahia
Júnior explorou, em 1908/9, as minas do manancial e a pia divisória que fornece
a água às duas bicas da fonte, tendo ficado impressionado com “tão grande porcaria e imprevidência”. A
pedra que fechava a pia divisória não era cimentada e, à sua volta, abundavam “os bolos fecais” e a urina encharcava.
Ao longo da mina reconheciam-se “extensas infiltrações negras” e do teto da
mina, “em ocasiões de pouca chuva mesmo,
goteja em abundância”. Após a concretização de análises microbiológicas em
amostras colhidas nas minas e na fonte, o autor admitiu que os resultados
obtidos não são concordantes com os dados topográficos, que eram péssimos,
enquanto a qualidade da água era sofrível. Justificou a anomalia com a “falta de chuvas que que carreassem produtos
de inquinação”. Nos nossos dias, aqueles resultados levar-nos-iam a
rejeitar aquela água como potável.
Esquema do trajeto das minas do Manancial das Fontainhas,
segundo Bahia Júnior, 1909, pág. 98
|
A
Fonte das Fontainhas localiza-se na
Alameda do mesmo nome e está voltada para o Rio Douro, recebendo a água de duas
arcas do manancial, uma delas próxima da fonte e a outra na Praça da Alegria. A
Fonte, como a conhecemos, terá sido posta ao serviço do povo em 1830, mas
existe uma Memória do Padre Simão Duarte de Oliveira, de 1669, na qual se diz que
a fonte (primitiva?) terá sido feita quando se fundou o Hospital dos Gafos e
dos Lázaros e que ficava “retirada das
habitações e recreio do povo, da cidade, onde vai tomar sol de inverno e de
verão beber excelente água” [10].
Para além da caracterização microbiológica da sua água feita por Bahia Júnior,
devemos acrescentar a determinação da dureza total da água da Fonte feita por
Gavand, em setembro de 1863, que registou o valor de 86 mg/L CaCO3,
valor muito próximo da dureza total da água atualmente servida pelas Águas do
Porto, E.M., correspondendo a água macia.
Lavadouros das Fontainhas |
Desde finais do século XX que a Fonte e
a Alamedas das Fontainhas estão ligadas aos festejos de São João, servindo, há
muitos anos, de cascata sanjoanina.
[1] Joana Sequeira. 2010. História do Porto – Como nasce uma cidade. Das
origens ao Condado Portucalense. QN – Edições e Conteúdos, S.A., Matosinhos
[2] A tomada
do povoado terá usado o topónimo Cale, devido ao nome do
povo que habitava o Norte do Douro – os calaicos – que mais tarde deram nome à
região da Calécia ou Galécia.
[3] Oliveira, A. 1984. Um inédito de Nazoni: a Fonte das
Lágrimas (na cidade do Porto). Lucerna,
Número extraordinário: colectânea de Estudos de Homenagem a D. Domingos
de Pinho Brandão. Centro de Estudos Humanísticos da Delegação do Norte do
Ministério da Cultura. Porto., pp. 379-386.
[4] Ferreira Alves, J. J. B. 1988. O Porto
na época dos Almadas – Arquitetura, obras públicas. (Volumes I e II).
Dissertação de doutoramento em História de Arte apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade do Porto.
[5] Bahia Junior, J. 1909. Contribuição
para a hygiene do Porto. Analyse sanitária do seu abastecimento em água
potável. II – Mananciais do Campo Grande, Bispo e Freiras, Cavaca, Camões,
Virtudes, Fontainhas, Praça do Marquez de Pombal e Burgal; fontes suas
derivadas e fontes de nascente privativa. Dissertação Inaugural apresentada à
Escola Medico - Cirúrgica do Porto.
[6] Marçal, H., 1968, O abastecimento de
água à cidade do Porto e à Vila de Matosinhos, Separata do Boletim da
Biblioteca Pública Municipal de Matosinhos, n.º 15.
[8] Diogo Emanuel Pacheco Teixeira. 2011. O Abastecimento de Água na Cidade do
Porto nos Séculos XVII e XVIII.
Aquedutos, Fontes e Chafarizes. Dissertação de Mestrado em História da
Arte Portuguesa Faculdade
de Letras Universidade do Porto
[9] O caudal de água que brotava das
nascentes expressava-se em penas de
água, anéis e manilhas, que estavam relacionados com a quantidade de água que
atravessava um orifício circular com a espessura, respetivamente, de uma “pena
de pato”, de um “dedo” e de um “punho”. No Porto, 1 pena de água correspondia a
534 litros por dia quando a água era fornecida a particulares a partir de um
manancial público, e 636 litros por dia para o caudal das fontes e mananciais
municipais. Uma manilha equivalia a 16 anéis, e um anel a oito penas.
[10] Oliveira Ramos, L.,
2000, História do Porto, Porto Editora, 3º ed., Porto.
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