terça-feira, 6 de setembro de 2016

parte III

A partir do século VI a cidade ultrapassou os limites da velha cerca e estendeu-se preferencialmente pela encosta ocidental do morro da Sé, em direção à Ribeira. A parte negativa deste progresso teve a ver com os assaltos de que a cidade passou a ser alvo, havendo mesmo notícias da sua destruição, no final do século X, por parte dos Mouros. A partir do século XII, a cidade iniciou a abertura de novas ruas e espaços públicos, algumas das quais ainda hoje se mantêm. Para compreendermos aquela época, vale a pena  passar os olhos pela descrição que Armindo de Sousa faz na “História do Porto” [1] da povoação limitada pela “cerca velha”. Sobre o viver das suas gentes, escreveu: “Homens e bichos, vivos e mortos, partilhavam o recinto, que vimos estreito, numa algazarra de barulhos e odores. Dentro da cerca havia de tudo: moradas de gente, cortes de animais, oficinas infectas, estrumeiras, sepulturas, o açougue, as enxercas, os curtidoiros, a Sé mais a sinagoga, a masmorra, a casa da tortura, os excrementos e os lodos perpétuos. A cidade era uma criatura a tresandar. É certo que havia um poço. Era uma fonte de chafurdo [2], perto do cemitério ou no cemitério mesmo [M. J. BARROCA, 1984 e 1987; e História da cidade do Porto, I]. ...E também não se inventara ainda a preocupação da saúde pública nem o luxo da higiene privada”. Aquelas condições sanitárias condicionaram o futuro da qualidade da água usada pelos habitantes do Porto e a dos seus rios e ribeiros.

Poço da Casa Museu de Guerra Junqueiro, na Rua de D. Hugo

No século X os cristãos procuravam reconquistar a península ibérica aos Muçulmanos. Nessa tarefa, foram apoiados por centenas de monges e cavaleiros franceses, entre os quais Henrique de Borgonha que, pelos seus feitos, foi recompensado pelo Rei Afonso VI, do Reino de Leão, com a mão de sua filha ilegítima Teresa e com o Condado Portucalense. Procurando controlar o seu território, logo designou os prelados para as dioceses de  Braga, Coimbra e Porto, neste último caso na pessoa de D. Hugo, também de origem francesa, que foi sagrado Bispo de Porto em março de 1112. O novo Bispo, que encontrou no alto de Pena Ventosa um pequeno burgo desgastado por assaltos e invasões, procurou recuperá-lo começando por construir a Sé, em substituição de uma pequena ermida, tornando-a o “pólo central de toda a malha urbana” [3]. Em redor da cerca estendiam-se terrenos ainda incultos cujo limite estava no fundo da íngreme escarpa, junto ao Rio Douro. Onze anos depois da sua sagração, D. Hugo outorgou carta foral aos moradores “presentes e futuros”, “diploma fundamental para a história política, jurídica e económica da cidade” [4]. O objetivo central do Bispo foi o de atrair povoadores para engrandecer a povoação.

Vista atual do Morro da Sé

Em 1120, a rainha D. Teresa concedeu a D. Hugo um vasto território limitado pelo Canallem Maiorum (Canal Maior, atual Rio da Vila) até ao Rio Tinto, concretamente no lugar de Noeda na freguesia de Campanhã, e do Douro a Arca d’Água. Oliveira Ramos e outros historiadores estão convencidos que os limites do couto iam desde Germinaldi (Germalde era o nome da elevação a que se chama hoje monte da Lapa) até ao Douro, seguindo a linha do Rio da Vila. Posteriormente, D. Afonso Henriques estendeu-o até Contumil, Asprela, Monte dos Burgos e Carvalhido [5]. Passados alguns anos, durante o episcopado de Pedro Rabaldes (1138-1145), foi fixado para a cidade, a partir de Portus, o topónimo Portu [6].

No Porto, a partir do reinado de D. Sancho I, os conflitos entre os bispos, os burgueses e a coroa eram frequentes e de diversa natureza, a que não era alheio o rendimento gerado pelas trocas comerciais e marítimas que aumentavam de dia para dia. Apesar daquelas querelas, a cidade foi-se alargando durante os séculos XII e XIII, começando a construir-se habitações na margem direita do Rio da Vila e subindo pela encosta Sul do Monte Vitória, num território que D. Afonso III considerava seu porque o Rio da Vila limitava o couto do Bispo. D. Julião Fernandes reagiu insistindo que o Canal Maior referido na doação de D. Teresa designava o Rio Frio [7]. Obrigou mesmo os seus súbditos, sob pena de excomunhão, a chamar de Cividade ao Rio da Vila, e apropriou-se, em 1249, da zona entre os dois rios que vinha ganhando importância pelas muitas mercadorias que por ali transitavam. Em 1325, D. Afonso IV pôs um ponto final na contenda construindo ai a Alfândega do Porto.

O Rio da Vila [8], para além de se ter chamado Cividade, e, antes, Canal Maior, também recebeu as designações de Pelames e dos Carros devido aos lugares por onde passava. Este Rio resulta da reunião, na antiga Porta dos Carros, que ficava a poucos metros da atual Igreja dos Congregados, de dois ribeiros: um deles, com um percurso de cerca de 1770 m, nasce, ou nascia, no monte de S. Brás entre o cimo da rua do Bonjardim e a rua de S. Brás, atravessa a rua do Paraíso entre Bonjardim e Camões, local onde servia os lavadouros da Trindade, passa por baixo da Igreja da Trindade e do edifício da Câmara Municipal do Porto, segue pela Avenida dos Aliados e pelo lado nascente da Praça da Liberdade, entrando na Praça Almeida Garrett; o segundo, que tinha um percurso da ordem dos 1370 m, nasce na vertente oriental do Monte dos Congregados (Furtado de Antas, 1902), próximo do cruzamento das ruas de Santa Catarina e Gonçalo Cristóvão, no lugar da Fontinha, desce, paralelamente e a oeste da rua de Santa Catarina, por Fradelos, Bolhão, e sob a atual Rua Sá da Bandeira até ao ponto de encontro com o primeiro. Recebia ainda as águas de toda a encosta sudoeste do Monte de Salgueiros e oeste do Alto da Fontinha. O curso do rio da Vila seguia ziguezagueando pelas traseiras das casas da Rua das Flores, torcendo um pouco abaixo da Ponte Nova para o lado da extinta Rua da Biquinha, a meio da qual, em pronunciada curvatura, flectia para a Rua de S. João e em linha recta dirigia-se ao Rio Douro.”(O Tripeiro, Série VI, Ano VI). Neste último troço, com 720 m, o rio da Vila, que recebia as águas da encosta da Sé e de Vitória, fazia mover alguns moinhos à boca da Rua do Souto, na Rua de Cangostas e junto à Ponte Nova [9]. A sua entrada no Douro não é agora visível porque aqui foi aplicada, na década de 1990, uma técnica local em que o rio foi entubado até ao meio do Douro. Assim se desvia da vista de todos a carga poluente, escondendo o que de mau ainda acontece no saneamento da cidade do Porto. Também tiveram que migrar para a nova “foz” as inúmeras tainhas que antes pululavam no Douro, importantes “contribuintes” para a despoluição do Douro, passe a ironia.

A Rua das Flores e a Rua dos Canos em 1813. A azul, troço do Rio da Vila,
a céu aberto naquela data.
Fonte: 
http://doportoenaoso.blogspot.pt/2013/01/barroquismos-vii-13-2-parte.html
Rua Mouzinho da Silveira

Quando da construção da Muralha Fernandina houve necessidade de encanar o troço superior do rio no então Largo da Feira de São Bento (hoje Praça de Almeida Garrett). O entubamento do rio continuou quando João de Almada mandou abrir a Rua de São João, em 1765, e durante a construção da Rua de Santa Catarina das Flores (1521-1525), atualmente Rua das Flores. O troço desta rua entre a Praça de Almeida Garrett e a Rua de D. Maria II (atual Rua de Trindade Coelho) assumiu o nome de Rua dos Canos tanto pelo encanamento do Rio como por outras canalizações que passavam no seu subsolo e que abasteciam de água as zonas mais baixas da cidade, particularmente ao Convento de S. Domingos [10].

Largo de S. Domingos

O Rio da Vila recebia, desde a formação do burgo, todos os lixos e imundícies produzidos nas suas imediações, as descargas dos tanques da curtimenta de peles, os lixiviados dos Aloques da Biquinha, depósitos de lixo e estrume da CMP existentes nas traseiras dos edifícios da Rua das Flores, depósitos esses fechados em 1854, as escorrências das ruas e das fossas de uma boa parte da cidade. Estas contaminações faziam com que o rio fosse uma fonte de maus cheiros a ponto de haver muitas reclamações dos habitantes da zona, que levaram ao seu encanamento, em 1875, quando da abertura da Rua de Mouzinho da Silveira [11]. Sabia-se que a água do rio era causa de doenças, e, segundo Ribeiro da Silva, 1985, a própria Vereação estava consciente, em 1613, dos prejuízos que a água do rio acarretava para a saúde pública. Com o encanamento do rio desapareceu o seu lamaçal que tantos detritos acumulava, prejudicando os moradores. Apesar de totalmente encanado, a sua contaminação agravou-se ao longo dos tempos devido a ligações clandestinas de esgotos domésticos. Dizia D’Andrade Júnior [12], em 1895, que “dentro dos muros corria o Rio da Vila ...que servia para levar as imundícies”.

Rua de São João

O encanamento do Rio da Vila e seu afluentes não os libertou da contaminação. Em 2001, Reis (2002) [13], determinou a qualidade da água do Rio da Vila num ponto de amostragem da Rua Mouzinho da Silveira, reconhecendo-se que esta é a linha de água mais poluída do Porto, com valores da Carência Química de Oxigénio superiores às de efluentes domésticos. Transportava naquele ponto, em média, cerca de 10,6 ton/dia de carga orgânica [14] (com valores pontuais variando entre 8,5 e 16,2 ton/dia). Face aos valores obtidos para o Índice de Qualidade Geral (IQG) [15], a água deste rio foi classificada como sendo de qualidade péssima.

Para além do seu total encanamento e dos ribeiros que lhe dão origem, o rio da Vila tem sofrido desvios sempre que o progresso tem que avançar. A instalação do metro do Porto foi um dos casos, do qual se realça o difícil desvio na Praça Almeida Garrett. Temos agora as obras de restauro e de modernização do Mercado do Bolhão que já tem dado alguma polémica. Uma parte da rua Fernandes Tomás, próximo do mercado do Bolhão, assenta em estacaria, o mesmo acontecendo na rua de Passos Manuel, próximo da rua de Sá da Bandeira, parte desta rua nas proximidades do atual teatro Sá da Bandeira (outrora do Príncipe Real) e em parte da Rua de 31 de Janeiro, antes de Santo António (Furtado de Antas, 1902). Num dos projetos da reconversão do Mercado previa-se a construção de um túnel pedonal que o ligasse ao parque de estacionamento subterrâneo da Praça de D. João I. Tal ligação foi considerada tecnicamente inviável pela Direção Regional de Cultura do Norte devido ao fato de, no subsolo da Rua Sá da Bandeira, correr um ramo do Rio da Vila. Entretanto o arranque do desvio da linha de água teve início em agosto de 2016, mas, segundo o Jornal de Notícias de 17/8/16, o Ministério Público está a investigar a existência de um eventual crime nesse processo, na sequência de uma queixa apresentada pelo arquiteto autor do projeto de 1998 para o Bolhão, que alega que “há, pelo menos, duas questões relacionadas com o projeto e o processo do mercado que violam a Lei de Base do Património Cultural”. O arquiteto afirmou ao jornal “Público” que o “desvio de uma linha de água que atravessa todo o imóvel para as ruas Sá da Bandeira e Fernandes Tomás pode ser perigosa e criar problemas até às construções envolventes”. Onde desaguará este caso?

Trajeto do Rio da Vila e seus afluentes 

Legenda: 1 - Igreja dos Congregados; 2 - Avenida dos Aliados; 3 - Igreja da Trindade; 4 - Mercado do Bolhão

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O Rio Frio ou Rio do Carregal ou Rio de Monchique, que em tempos remotos, serviu como baliza, de acordo com o desejo e interesse do Bispado, aos extremos dos territórios de doações Régias feitas aos dois Cabidos  da Catedral e Colegiada de Cedofeita [16]. Nasce nas proximidades da atual Rua da Torrinha, segundo Furtado das Antas, 1902 [17], “nos terrenos compreendidos pelo pentágono formado pelas ruas da Boa Hora, Rosário, Torrinha, Cedofeita e Breyner, atravessa a rua do Breyner a meia distância entre Cedofeita e Rosário, e segue pela praça do Duque de Beja”,  passa pelo Jardim do Carregal [18], por baixo do Hospital de Santo António (foi encanado, em 1769 para sobre ele se construir o hospital), desce pela encosta ocidental do monte da Vitória até Miragaia, e corre, até à construção da Alfandega Nova, ao longo do areal da praia de Miragaia, desaguando então no Rio Douro num local próximo da Fonte da Colher. Atualmente desagua na área da Alfândega Nova, no sítio onde esteve a Porta Nobre, em Miragaia. O rio Frio está, atualmente, totalmente encanado no seu percurso de 1,4 km. Com o seu encanamento e ocupação do solo, a qualidade da sua água foi-se deteriorando e o ribeiro transformou-se em esgoto, embora diluído. Em 2001, Paula Reis (2002), qualificou a água do Rio Frio num ponto de amostragem próximo da sua foz (Miragaia), verificando que ele transportava, em média, cerca de 1,6 ton/dia de carga orgânica expressa como oxigénio (com valores pontuais que variaram entre 1,1 e 2,3 ton/dia). Para a Ribeira de Massarelos, e de acordo com o valor obtido para o IQG, a água deste rio foi classificada com a qualidade péssima.

Primitiva topografia do sítio do Carregal e suas imediações. Fonte da imagem:
 
http://portoarc.blogspot.pt/2013/04/rio-frio-e-fontes-que-alimenta.html











[1] Sousa, A. 1995. Tempos Medievais – in História do Porto, direção de Luís A. De Oliveira Ramos. Porto Editora. Porto. p. 120-253
[2] As fontes de mergulho ou chafurdo (cobertas ou arcadas) são constituídas por um tanque em que se mergulha o balde. O tanque deve ser protegido por uma abóbada de pedra ou outro material por forma a impedir o acumular de impurezas. O acesso faz-se normalmente descendo dois ou três degraus.
[3] Sousa Assunção, D. 2010. O Morro da Sé – reflexões de um passado para o futuro. Universidade Fernando Pessoa, Porto.
[4] Ricardo Jorge, 1897. Origens e desenvolvimento da população do Porto – Notas históricas & estatísticas. Typographia Occidental, Porto.
[5] Oliveira Ramos, 2000.
[6] AFONSO, José Ferrão – A imagem tem que saltar, ou o rebate dos signos. A cidade episcopal e o Porto intramuros no século XVI: propriedade ritual, representação e forma urbana (1499-1606). Dissertação de tese de doutoramento apresentada à Universidade Politécnica de Catalunya, Escola Técnica Superior d’Arquitectura de Barcelona, Departament de Composició Arquitectònica. Barcelona, 2008, Vol. I, p. 23., citado por Afonso, D. B. B. 2012. A rua na construção da forma urbana medieval: Porto, 1386-1521.
[7] Diogo Teixeira, 2011, atribui a este rio o nome de Canal Menor.
[8] O vale do rio da Vila terá correspondido ao trajeto da calçada romana de Lisboa a Braga, que seguiria aproximadamente por onde é a rua do Bonjardim. A Cividade pode ter sido uma estação dessa estrada. Vereaçoens – anos de 1390 – 1395.
[9] Francisco Ribeiro da Silva. 1985. O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder. II Volume. Dissertação de Doutoramento em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[10] Isabel Maria Ribeiro Tavares de Pinho. 2000. O mosteiro de São Bento de Ave Maria do Porto, 1518/1899 – Uma arquitetura no século XVIII. Vol. I. Dissertação de Mestrado em História de Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
[11] As Águas do Porto, EEM, pretende abrir a visitantes o troço, com cerca de 350 m, do rio da Vila no percurso entre a Estação de S, Bento e a Praça da Ribeira[11], embora o troço entre o Largo de São Domingos e aquela Praça seja feita à superfície. Neste trecho o rio escoa através de um túnel em granito, com 2,5 m de largura e 3 m de altura, construído durante a abertura da Rua Mouzinho da Silveira.
[12] D’Andrade Júnior, A. 1895. Breves apontamentos sobre as águas dos poços do Porto. Dissertação Inaugural à Escola Médica-Cirúrgica do Porto.
[13] Reis, P. A. S. C., 2002, Situação atual dos rios e ribeiros do Porto. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Engenharia Biológica da Escola de Engenharia da Universidade do Minho.
[14] A carga orgânica foi determinada pelo produto entre o caudal e a Carência Química de Oxigénio, expressa como o oxigénio equivalente necessário para oxidar os redutores presentes na água, a maior parte dos quais integrados na chamada, pelos químicos, matéria orgânica. As águas naturais puras têm quantidades pequeníssimas, mesmo insignificantes, de matéria orgânica.
[15] O IGQ tem por objetivo comparar amostras sucessivas de uma estação de amostragem ou entre amostras de estações diferentes. O seu valor é obtido pelo somatório ponderado dos parâmetros analíticos físico-químicos e bacteriológicos considerados na caracterização de cada amostra. Quanto maior for o valor de IQG maior é a qualidade da água; entre 85 e 100 a água é excelente; se o IGQ for menor do que 50 a água é considerada péssima.
[16] Apontamentos para a verdadeira história antiga e moderna da cidade do Porto, de Henrique Duarte e Souza Reis, volume concluído em 25 de Junho de 1867, publicado em Manuscritos inéditos da Biblioteca Pública Municipal do Porto, II Série – 4, Porto 1991.
[17] Furtado das Antas, A. C., 1902, Insalubridade do Porto. Dissertação Inaugural apresentada à Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
[18] O topónimo Carregal deriva da existência de Carregas, plantas próprias de terrenos pantanosos.

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