sexta-feira, 11 de maio de 2018

Parte XI


Finalmente aconteceu o inevitável: a municipalização da Companhia que apenas servia 5,4% dos 222.287 habitantes da cidade do Porto. A Câmara Municipal resgatou a concessão, em 28 de março de 1927, por 3.500 contos e criou, quatro dias depois, os Serviços Municipalizados de  Águas e Saneamento, SMAS. Quando, nos nossos dias, se reconhece a incapacidade que algumas Câmaras têm em resgatar os serviços de águas entregues a empresas que blindaram a seu favor os contratos assinados, vale a pena recordar que há males que vêm por bem: a decisão de 1927 foi tomada por uma Comissão Administrativa Militar, presidida, entre julho de 1926 e fevereiro de 1930, pelo Coronel Raul de Andrade Peres. Esta Comissão foi nomeada na sequência do Golpe de Estado de 1926, e o Coronel Peres foi um dos militares do 28 de maio. Aconteceu ainda, um pouco mais de um mês e meio antes da data do resgate da Companhia, a “Revolta do Porto” ou “Revolta de Sousa Dias” que se estendeu ao resto do país e que, depois de dominada a sete de fevereiro pelos militares. Esta revolta aumentou a repressão governamental e abriu caminho à Ditadura.
Os SMAS começaram por beneficiar a Central do Sousa recuperando todo o equipamento que estava pessimamente conservado e construir os reservatórios com a capacidade de 20.000 metros cúbicos na Central de Nova Sintra (1928/29). Para aumentar a capacidade de elevação de água para 16.000 metros cúbicos por dia foram instalados foram instalados duas eletrobombas da marca Rateau com motores Brown Bovery & Co. Ao mesmo tempo, passaram a receber corrente elétrica a 16.000 Volts da União Elétrica Portuguesa, para a qual foi necessário instalar um posto de transformação. Deram, ainda, início à expansão do serviço de abastecimento de água. Entre junho de 1928 e dezembro de 1933 o total de consumidores de água aumentou de 13.259 para 19.499 (+47%) e o número de fontenários instalados aumentou de 95 para 119 (Antas & Monterroso, 1934[1]), e foram construídos 10 marcos bebedouros. Em contrapartida, o número de fontes passou de 55 para 33, das quais 10 passaram a ser servidas com água da companhia. As 22 fontes de diferença foram encerradas por apresentarem água imprópria para consumo.
Em 1927, a CMP expropriou amigavelmente à empresa de joalheiros Almeida Miranda & C.ª que, por sua vez, a tinha comprado à família Reid, em 1922, a Quinta de Nova Sintra para aí instalar os Serviços do SMAS do Porto. Para além da sua Administração, localizam-se nesta antiga quinta os serviços administrativos e de manutenção da rede de água e saneamento, o laboratório de controlo da qualidade da água e os reservatórios de Nova Sintra. A posse desta quinta teve a ver com a necessidade de possuir um espaço onde construir novos reservatórios com capacidade até 100,000 metros cúbicos a uma cota inferior à dos reservatórios de S. Isidro para reforçar o caudal de água vindo de Jovim por aumento do desnível entre o ponto de partida e o de chegada, passando de 15 metros para 48 metros. Desses reservatórios, parte da água abastecia a zona baixa da cidade e a restante era bombeada para Santo Isidro. É impossível não destacar o Parque de Nova Sintra ou Jardins Românticos de Nova Sintra que conserva belos exemplares de espécies arbóreas e para onde foram transferidas importantes fontes, chafarizes e arcas que durante séculos serviram os portuenses, onde se destacam: o brasão da Fonte de São Domingos, a Fonte de Cedofeita, a Fonte do Ribeirinho ou dos Ablativos, o Chafariz do Convento de Avé Maria e a Arca do Mercado do Anjo. Dispõe, ainda, de fontes próprias: a do Universo, autoria de Irene Vilar,  e a nova fonte, cuja escultura é identificada como “Self Portrait as a Fountain (Fat Chance Bruce Nauman)”, da autoria de Julião Sarmento. A Fonte do Universo, instalada em 1987, é uma escultura em bronze representando o espaço e o tempo. A nova fonte, instalada em 2017 durante as obras de remodelação do Parque, é um auto-retrato na forma feminina, do escultor Bruce Nauman.
Face à incapacidade de a Central do Sousa de fornecer a quantidade de água necessária para a cidade, os SMAS reforçaram o abastecimento captando água no sub-leito do Douro, em Zebreiros. A água aí captada era mais dura e tinha mais cloretos do que a do rio Sousa e tinha um título coli – bacilar superior a 100 cm3, ou seja, bacteriologicamente pura. Conseguiram, assim, atingir os 85.000 metros cúbicos por dia que eram bombeados para Jovim[2]. Quando, em 1934, os SMAS se viram obrigados, por decreto-lei, a abastecer os concelhos de Gondomar, Vila Nova de Gaia e Matosinhos, houve necessidade de proceder à abertura de novos poços no areal de Zebreiros, estando, em 1938, oito em funcionamento ligados a um poço coletor selado e submersível. A água recolhida neste poço era conduzida para a Central do Sousa, donde seguia para Jovim, com o apoio de três eletrobombas e duas motobombas. A crescente importância de Zebreiros justificou a construção, em 1940, da Central de Zebreiros, que enviava a água diretamente para o novo reservatório de Jovim. Na cidade foi iniciada, em 1959, a construção do reservatório do Bonfim que ficou concluído em 1961. Na década de 70, integrados no sistema regional, foram construídos o Reservatório de Ramalde, em Gondomar, Reservatório de Pedrouços, na Maia, e a uma Central elevatória em Jovim.

Figura 1 – Poço de transferência de água da captação de Zebreiros.

Figura 2 – A abandonada Central de Zebreiros

Figura 3 – Conduta de condução da água de Zebreiros atacada pela corrosão.


Integrada no Sistema de Navegabilidade do Douro, a EDP decidiu construir uma a barragem em Crestuma/Lever, ignorando a opinião de muita gente que defendia a sua localização um pouco mais abaixo, próximo de Atães, de modo a preservar as captações dos SMAS de Zebreiros. De nada valeram os argumentos e os SMAS foram obrigados a encarar a hipótese, a exemplo de Gaia, de construírem as suas captações em Lever. Pensaram nisso em 1983, mas, um ano depois, urgia tomar uma decisão face à eminente conclusão da barragem. A abertura, em Agosto de 1984, do canal previsto no projecto de navegabilidade, provocou o drástico corte de caudal do rio, fazendo com que a água do mar tivesse subido o rio e contaminando as captações de Zebreiros. Este fato precipitou a construção das captações de Lever no sub - leito do Douro, a montante da barragem em construção. Para as construir e montar uma conduta de emergência, a Câmara Municipal do Porto, face sem o apoio da Administração Central, teve de abdicar de todos os investimentos previstos para aquele ano e de recorrer a um empréstimo obrigacionista de meio milhão de contos para levar a cabo o empreendimento. Um dos autores deste texto teve a feliz oportunidade de descer a um dos poços e apreciar o processo de instalação dos drenos horizontais. A grandeza da obra era esmagadora, até porque a esperava a cobertura de uma grande massa de água. Pretendia-se, no fundo, utilizar o areal como um meio filtrante, recolhendo-se a água filtrada através dos drenos horizontais e conduzindo-a para o poço central a partir da qual era transportada para a estação elevatória. Como filtro tinha um grande defeito que se veio a sentir penosamente: a incapacidade para lavar o meio filtrante. Em 1985, entrou em funcionamento a Central Elevatória de Lever com capacidade para produzir 220.000 m3/dia, mais do que suficiente para satisfazer os consumos de então, 140.000 m3/dia (Soares, 1987). Foram, então, desativadas a centenária Central do Sousa e as captações de Zebreiros. Manteve-se, contudo, a estação elevatória de Zebreiros que recebia a água de Lever através de uma conduta. Com a conclusão da barragem, precipitou-se, contudo, o atrás referido efeito negativo da solução adotada: a deposição no areal dos materiais arrastados pelo rio reduzia consideravelmente o caudal de água captada devido à colmatagem do areal que servia de meio filtrante, originando escassez de água, sobretudo nos concelhos periféricos ao do Porto, criando alguns problemas políticos entre municípios.
No início da década de 1980, face à possível deterioração da qualidade da água do rio Douro devido ao aumento da poluição por efluentes industriais, aos quais se podia juntar a ameaça de contaminação pela radioatividade produzida por uma central nuclear espanhola a instalar perto da fronteira num afluente do rio Douro, foi admitida a hipótese para abastecimento de água à área metropolitana do Porto a partir da possível barragem reversível de Alvarenga a construir no Rio Paiva. Para além da quantidade e boa qualidade da água do rio Paiva, aquela hipótese apresentava uma importante vantagem: o sistema podia funcionar por gravidade devido à sua cota. A solução tinha um grande obstáculo: as dificuldades do percurso entre Alvarenga e as redes de distribuição (Soares, 1987). Talvez por isso, e porque parece estar afastado o fantasma da central nuclear espanhola, hipótese que não se concretizou.
A necessidade de grandes investimentos ao nível de captação e tratamento de água levaram à constituição, em 1995, de uma empresa de capitais públicos - Águas do Douro e Paiva, S.A. - que a partir de Janeiro de 1996 passou a garantir o abastecimento em alta à Área Metropolitana do Porto, passando os SMAS a garantir apenas distribuição em baixa de água no concelho. Os SMAS integraram, então, o Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água à Área Sul do Grande Porto. Em 2015, a empresa Águas do Douro e Paiva, S.A. foi associada às empresas Águas do Noroeste, S.A., Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A., e Simdouro – Saneamento do Grande Porto, dando origem à Águas do Norte, S.A., a quem foi atribuída “em regime de exclusivo, a concessão da exploração e da gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, pelo prazo de trinta anos”. Em fevereiro de 2017, é criado “o sistema multimunicipal de abastecimento de água do sul do Grande Porto e o sistema multimunicipal de saneamento do Grande Porto, ambos por cisão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, e as respetivas entidades gestoras, respetivamente, Águas do Douro e Paiva, S.A. e SIMDOURO - Saneamento do Grande Porto, S.A.”[3].
A Estação de Tratamento de Água de Lever (ETA de Lever), localizada na margem esquerda do Rio Douro junto à Barragem de Cretuma-Lever, inaugurada em março de 2000, trata, atualmente, cerca de 400.000 metros cúbicos por dia, servindo cerca de milhão e meio de habitantes. A ETA de Lever integrou as instalações que ali existiam pertencentes aos SMAS do Porto e de Vila Nova de Gaia que incluíam três poços de captação em profundidade, duas estações elevatórias e duas subestações de energia. Sendo necessário aumentar o caudal de abastecimento, foi posta em funcionamento, em 2000, uma nova captação de água superficial, uma nova estação de tratamento de água, uma estação elevatória, uma unidade de tratamento de lamas e um laboratório. O processo de tratamento da água tem as seguintes etapas: um conjunto de filtros multimédia (areia + antracite), oxidação de redutores por meio de ozono, coagulação e floculação com aplicação de sulfato de alumínio como coagulante, adição de carvão ativado para adsorver compostos orgânicos e remover o excesso de ozono, flutuação e filtração para clarificação final da água, e desinfeção final com cloro. A água tratada é recebida num reservatório de 30.000 m3, sendo posteriormente elevada para os reservatórios de Jovim, de Lagoa e de Seixo Alto. Destes reservatórios partem as redes de abastecimento de água ditas em baixa.
Admitiu-se como outra alternativa para abastecimento de água à área do Grande Porto a captação no rio Cávado, garantindo-se assim que o fornecimento de água a partir de dois rios afastados entre si, reduzindo-se desta forma o risco de ruptura no fornecimento. Esta hipótese foi aprovada em novembro de 2004, anulando outra que vinha sendo preparada com a captação localizada na albufeira do Torrão, no rio Tâmega. Esta decisão enquadrava-se na estratégia da empresa Águas de Portugal, S.A. de interligar sistemas multi-municipais.
Substituindo os SMAS do Porto, em Outubro de 2006, foi constituída a Águas do Porto, EM, uma empresa municipal cujo capital social é detido, na sua totalidade, pela Câmara Municipal do Porto. A empresa dá continuidade aos serviços prestados pelos antigos SMAS do Porto, abarcando atualmente novas áreas de atuação, correspondendo o seu objeto social à gestão integrada e sustentável de todo o ciclo urbano da água no município do Porto. Para além da distribuição de água e da drenagem de águas residuais e de águas pluviais, foi integrada a gestão das praias e das ribeiras. A impressão que temos, como clientes, é a de que a empresa ganhou dinamismo e que tem trabalhado para melhor nos servir, não se tendo limitado a fornecer a água e recolher e tratar os esgotos. Embora pouco conhecidos, dois projetos, entre outros, merecem ser destacados: o Projeto Ribeiras do Porto, que tem como objetivos a despoluição, o desentubamento e a reabilitação das tão massacradas ribeiras, e o Projeto Porto Gravítico[4] que modificou a rede de abastecimento de água eliminando a necessidade de a elevar por meio de grupos elevatórios e poupando mais do que um milhão de euros em energia elétrica, aliviando assim o preço da água.

Figura 4 - A solução adotada para o abastecimento de água à cidade do Porto no Projeto Porto Gravítico (Fonte: Poças Martins & Cunha, 2007).





[1] Antas, A. e Monterroso, M., 1934. A salubridade habitacional no Porto (1929 – 1933). Inspeção Geral de Saúde do Porto da Direção Geral de Saúde do Ministério do Interior, Lisboa.
[2] Soares, A. S., 1987, O aproveitamento hidroelétrico de Alvarenga e o abastecimento de água à região do Porto, Electricidade, n.º 239, Outubro de 1987: 339 – 343.
[3] Águas do Norte, S.A., Quem Somos, em https://goo.gl/1PFUXj, consultado em 25/3/18.
[4] Poças Martins, J., Cunha, R., 2007, Projeto Porto Gravítico: reformulação de um sistema de abastecimento de água centenário, 2.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente, [2007], FEUP, ISBN 978-989-95557-1-6