Finalmente aconteceu
o inevitável: a municipalização da Companhia que apenas servia 5,4% dos 222.287
habitantes da cidade do Porto. A Câmara Municipal resgatou a concessão, em 28
de março de 1927, por 3.500 contos e criou, quatro dias depois, os Serviços
Municipalizados de Águas e Saneamento,
SMAS. Quando, nos nossos dias, se reconhece a incapacidade que algumas Câmaras
têm em resgatar os serviços de águas entregues a empresas que blindaram a seu
favor os contratos assinados, vale a pena recordar que há males que vêm por
bem: a decisão de 1927 foi tomada por uma Comissão Administrativa Militar,
presidida, entre julho de 1926 e fevereiro de 1930, pelo Coronel Raul de
Andrade Peres. Esta Comissão foi nomeada na sequência do Golpe de Estado de 1926,
e o Coronel Peres foi um dos militares do 28 de maio. Aconteceu ainda, um pouco
mais de um mês e meio antes da data do resgate da Companhia, a “Revolta do
Porto” ou “Revolta de Sousa Dias” que se estendeu ao resto do país e que,
depois de dominada a sete de fevereiro pelos militares. Esta revolta aumentou a
repressão governamental e abriu caminho à Ditadura.
Os SMAS começaram
por beneficiar a Central do Sousa recuperando todo o equipamento que estava
pessimamente conservado e construir os reservatórios com a capacidade de 20.000
metros cúbicos na Central de Nova Sintra (1928/29). Para aumentar a capacidade
de elevação de água para 16.000 metros cúbicos por dia foram instalados foram
instalados duas eletrobombas da marca Rateau com motores Brown Bovery & Co.
Ao mesmo tempo, passaram a receber corrente elétrica a 16.000 Volts da União
Elétrica Portuguesa, para a qual foi necessário instalar um posto de
transformação. Deram, ainda, início à expansão do serviço de abastecimento de
água. Entre junho de 1928 e dezembro de 1933 o total de consumidores de água
aumentou de 13.259 para 19.499 (+47%) e o número de fontenários instalados
aumentou de 95 para 119 (Antas & Monterroso, 1934[1]), e
foram construídos 10 marcos bebedouros. Em contrapartida, o número de fontes
passou de 55 para 33, das quais 10 passaram a ser servidas com água da
companhia. As 22 fontes de diferença foram encerradas por apresentarem água
imprópria para consumo.
Em 1927, a CMP expropriou
amigavelmente à empresa de joalheiros Almeida Miranda & C.ª que, por sua
vez, a tinha comprado à família Reid, em 1922, a Quinta de Nova Sintra para aí
instalar os Serviços do SMAS do Porto. Para além da sua Administração,
localizam-se nesta antiga quinta os serviços administrativos e de manutenção da
rede de água e saneamento, o laboratório de controlo da qualidade da água e os
reservatórios de Nova Sintra. A posse desta quinta teve a ver com a necessidade
de possuir um espaço onde construir novos reservatórios com capacidade até
100,000 metros cúbicos a uma cota inferior à dos reservatórios de S. Isidro para
reforçar o caudal de água vindo de Jovim por aumento do desnível entre o ponto
de partida e o de chegada, passando de 15 metros para 48 metros. Desses
reservatórios, parte da água abastecia a zona baixa da cidade e a restante era
bombeada para Santo Isidro. É impossível não destacar o Parque de Nova Sintra ou
Jardins Românticos de Nova Sintra que conserva belos exemplares de espécies
arbóreas e para onde foram transferidas importantes fontes, chafarizes e arcas
que durante séculos serviram os portuenses, onde se destacam: o brasão da Fonte
de São Domingos, a Fonte de Cedofeita, a Fonte do Ribeirinho ou dos Ablativos,
o Chafariz do Convento de Avé Maria e a Arca do Mercado do Anjo. Dispõe, ainda,
de fontes próprias: a do Universo, autoria de Irene Vilar, e a nova fonte, cuja escultura é identificada
como “Self Portrait as a Fountain
(Fat Chance Bruce Nauman)”, da autoria de Julião Sarmento. A Fonte do Universo, instalada em 1987, é
uma escultura em bronze representando o espaço e o tempo. A nova fonte, instalada
em 2017 durante as obras de remodelação do Parque, é um auto-retrato na forma
feminina, do escultor Bruce Nauman.
Face à incapacidade
de a Central do Sousa de fornecer a quantidade de água necessária para a cidade,
os SMAS reforçaram o abastecimento captando água no sub-leito do Douro, em
Zebreiros. A água aí captada era mais dura e tinha mais cloretos do que a do
rio Sousa e tinha um título coli – bacilar superior a 100 cm3, ou
seja, bacteriologicamente pura. Conseguiram, assim, atingir os 85.000 metros
cúbicos por dia que eram bombeados para Jovim[2]. Quando,
em 1934, os SMAS se viram obrigados, por decreto-lei, a abastecer os concelhos
de Gondomar, Vila Nova de Gaia e Matosinhos, houve necessidade de proceder à
abertura de novos poços no areal de Zebreiros, estando, em 1938, oito em
funcionamento ligados a um poço coletor selado e submersível. A água recolhida
neste poço era conduzida para a Central do Sousa, donde seguia para Jovim, com
o apoio de três eletrobombas e duas motobombas. A crescente importância de
Zebreiros justificou a construção, em 1940, da Central de Zebreiros, que enviava
a água diretamente para o novo reservatório de Jovim. Na cidade foi iniciada,
em 1959, a construção do reservatório do Bonfim que ficou concluído em 1961. Na
década de 70, integrados no sistema regional, foram construídos o Reservatório
de Ramalde, em Gondomar, Reservatório de Pedrouços, na Maia, e a uma Central
elevatória em Jovim.
Figura
1 –
Poço de transferência de água da captação de Zebreiros.
Figura
2 –
A abandonada Central de Zebreiros
Figura 3 – Conduta de condução da água
de Zebreiros atacada pela corrosão.
Integrada no Sistema
de Navegabilidade do Douro, a EDP decidiu construir uma a barragem em
Crestuma/Lever, ignorando a opinião de muita gente que defendia a sua
localização um pouco mais abaixo, próximo de Atães, de modo a preservar as
captações dos SMAS de Zebreiros. De nada valeram os argumentos e os SMAS foram obrigados
a encarar a hipótese, a exemplo de Gaia, de construírem as suas captações em
Lever. Pensaram nisso em 1983, mas, um ano depois, urgia tomar uma decisão face
à eminente conclusão da barragem. A abertura, em Agosto de 1984, do canal
previsto no projecto de navegabilidade, provocou o drástico corte de caudal do
rio, fazendo com que a água do mar tivesse subido o rio e contaminando as
captações de Zebreiros. Este fato precipitou a construção das captações de
Lever no sub - leito do Douro, a montante da barragem em construção. Para as construir
e montar uma conduta de emergência, a Câmara Municipal do Porto, face sem o
apoio da Administração Central, teve de abdicar de todos os investimentos previstos
para aquele ano e de recorrer a um empréstimo obrigacionista de meio milhão de
contos para levar a cabo o empreendimento. Um dos autores deste texto teve a
feliz oportunidade de descer a um dos poços e apreciar o processo de instalação
dos drenos horizontais. A grandeza da obra era esmagadora, até porque a
esperava a cobertura de uma grande massa de água. Pretendia-se, no fundo, utilizar
o areal como um meio filtrante, recolhendo-se a água filtrada através dos
drenos horizontais e conduzindo-a para o poço central a partir da qual era transportada
para a estação elevatória. Como filtro tinha um grande defeito que se veio a
sentir penosamente: a incapacidade para lavar o meio filtrante. Em 1985, entrou
em funcionamento a Central Elevatória de Lever com capacidade para produzir
220.000 m3/dia, mais do que suficiente para satisfazer os consumos
de então, 140.000 m3/dia (Soares, 1987). Foram, então, desativadas a
centenária Central do Sousa e as captações de Zebreiros. Manteve-se, contudo, a
estação elevatória de Zebreiros que recebia a água de Lever através de uma
conduta. Com a conclusão da barragem, precipitou-se, contudo, o atrás referido efeito
negativo da solução adotada: a deposição no areal dos materiais arrastados pelo
rio reduzia consideravelmente o caudal de água captada devido à colmatagem do
areal que servia de meio filtrante, originando escassez de água, sobretudo nos
concelhos periféricos ao do Porto, criando alguns problemas políticos entre
municípios.
No início da década
de 1980, face à possível deterioração da qualidade da água do rio Douro devido
ao aumento da poluição por efluentes industriais, aos quais se podia juntar a
ameaça de contaminação pela radioatividade produzida por uma central nuclear
espanhola a instalar perto da fronteira num afluente do rio Douro, foi admitida
a hipótese para abastecimento de água à área metropolitana do Porto a partir da
possível barragem reversível de Alvarenga a construir no Rio Paiva. Para além
da quantidade e boa qualidade da água do rio Paiva, aquela hipótese apresentava
uma importante vantagem: o sistema podia funcionar por gravidade devido à sua
cota. A solução tinha um grande obstáculo: as dificuldades do percurso entre
Alvarenga e as redes de distribuição (Soares, 1987). Talvez por isso, e porque
parece estar afastado o fantasma da central nuclear espanhola, hipótese que não
se concretizou.
A necessidade de
grandes investimentos ao nível de captação e tratamento de água levaram à
constituição, em 1995, de uma empresa de capitais públicos - Águas do Douro e
Paiva, S.A. - que a partir de Janeiro de 1996 passou a garantir o abastecimento
em alta à Área Metropolitana do Porto, passando os SMAS a garantir apenas
distribuição em baixa de água no concelho. Os SMAS integraram, então, o Sistema
Multimunicipal de Abastecimento de Água à Área Sul do Grande Porto. Em 2015, a empresa
Águas do Douro e Paiva, S.A. foi associada às empresas Águas do Noroeste, S.A.,
Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A., e Simdouro – Saneamento do Grande
Porto, dando origem à Águas do Norte, S.A., a quem foi atribuída “em regime de exclusivo, a concessão da
exploração e da gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de
saneamento do Norte de Portugal, pelo prazo de trinta anos”. Em fevereiro
de 2017, é criado “o sistema
multimunicipal de abastecimento de água do sul do Grande Porto e o sistema
multimunicipal de saneamento do Grande Porto, ambos por cisão do sistema
multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal, e
as respetivas entidades gestoras, respetivamente, Águas do Douro e Paiva, S.A.
e SIMDOURO - Saneamento do Grande Porto, S.A.”[3].
A Estação de
Tratamento de Água de Lever (ETA de Lever), localizada na margem esquerda do
Rio Douro junto à Barragem de Cretuma-Lever, inaugurada em março de 2000,
trata, atualmente, cerca de 400.000 metros cúbicos por dia, servindo cerca de
milhão e meio de habitantes. A ETA de Lever integrou as instalações que ali
existiam pertencentes aos SMAS do Porto e de Vila Nova de Gaia que incluíam
três poços de captação em profundidade, duas estações elevatórias e duas
subestações de energia. Sendo necessário aumentar o caudal de abastecimento,
foi posta em funcionamento, em 2000, uma nova captação de água superficial, uma
nova estação de tratamento de água, uma estação elevatória, uma unidade de
tratamento de lamas e um laboratório. O processo de tratamento da água tem as
seguintes etapas: um conjunto de filtros multimédia (areia + antracite),
oxidação de redutores por meio de ozono, coagulação e floculação com aplicação
de sulfato de alumínio como coagulante, adição de carvão ativado para adsorver
compostos orgânicos e remover o excesso de ozono, flutuação e filtração para
clarificação final da água, e desinfeção final com cloro. A água tratada é
recebida num reservatório de 30.000 m3, sendo posteriormente elevada
para os reservatórios de Jovim, de Lagoa e de Seixo Alto. Destes reservatórios
partem as redes de abastecimento de água ditas em baixa.
Admitiu-se como outra
alternativa para abastecimento de água à área do Grande Porto a captação no rio
Cávado, garantindo-se assim que o fornecimento de água a partir de dois rios
afastados entre si, reduzindo-se desta forma o risco de ruptura no
fornecimento. Esta hipótese foi aprovada em novembro de 2004, anulando outra
que vinha sendo preparada com a captação localizada na albufeira do Torrão, no
rio Tâmega. Esta decisão enquadrava-se na estratégia da empresa Águas de
Portugal, S.A. de interligar sistemas multi-municipais.
Substituindo os SMAS
do Porto, em Outubro de 2006, foi constituída a Águas do Porto, EM, uma empresa
municipal cujo capital social é detido, na sua totalidade, pela Câmara
Municipal do Porto. A empresa dá continuidade aos serviços prestados pelos
antigos SMAS do Porto, abarcando atualmente novas áreas de atuação,
correspondendo o seu objeto social à gestão integrada e sustentável de todo o
ciclo urbano da água no município do Porto. Para além da distribuição de água e
da drenagem de águas residuais e de águas pluviais, foi integrada a gestão das
praias e das ribeiras. A impressão que temos, como clientes, é a de que a
empresa ganhou dinamismo e que tem trabalhado para melhor nos servir, não se
tendo limitado a fornecer a água e recolher e tratar os esgotos. Embora pouco
conhecidos, dois projetos, entre outros, merecem ser destacados: o Projeto Ribeiras do Porto, que tem como
objetivos a despoluição, o desentubamento e a reabilitação das tão massacradas
ribeiras, e o Projeto Porto Gravítico[4] que
modificou a rede de abastecimento de água eliminando a necessidade de a elevar
por meio de grupos elevatórios e poupando mais do que um milhão de euros em
energia elétrica, aliviando assim o preço da água.
Figura 4 - A solução adotada para o
abastecimento de água à cidade do Porto no Projeto Porto Gravítico (Fonte: Poças
Martins & Cunha, 2007).
[1] Antas, A. e Monterroso, M., 1934. A
salubridade habitacional no Porto (1929 – 1933). Inspeção Geral de Saúde do
Porto da Direção Geral de Saúde do Ministério do Interior, Lisboa.
[2] Soares, A. S., 1987, O aproveitamento hidroelétrico
de Alvarenga e o abastecimento de água à região do Porto, Electricidade, n.º
239, Outubro de 1987: 339 – 343.
[4] Poças Martins, J., Cunha, R., 2007,
Projeto Porto Gravítico: reformulação de um sistema de abastecimento de água
centenário, 2.as Jornadas de Hidráulica, Recursos Hídricos e Ambiente, [2007],
FEUP, ISBN 978-989-95557-1-6
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